Seu João e sua doce Esperança na Comunidade Quilombola Sapatu

 

Seu João nos recebeu com o sorriso banguela mais simpático que já vi. Ele ri com a boca e com os olhos, que brilham de contentamento por nos receber, embora nunca tenha nos visto.

Levantando-se do estreito e gasto banco de madeira onde estava sentado, abre os braços num abraço caloroso como se estivesse esperando nossa chegada. Não perco tempo e puxo conversa, ele se revela um bom conversador. Que sorte a minha!

Enquanto caminhávamos pela casa de taipa que ele fizera para mostrar aos visitantes como era a casa onde nasceu, ia debulhando contas mnemônicas e nos mostrando com alegria o artesanato que produz a partir de folhas de bananeiras, galhos secos, sementes e gravetos que vai encontrando e coletando pelo mato, por onde costuma caminhar. São objetos simples: chocalhos de cabaça, colares de sementes, banquinhos de madeira em formato de bicho, tampas de garrafas furadas ao meio e atravessadas por um arame, preso a um galho em formato de forquilha que, segundo ele, serve para fazer um barulhinho e brincar com as crianças. Seguro com carinho aquele objeto ainda sem nome e não largo mais. A simplicidade do objeto, o barulho conseguido no atrito das tampinhas de metal e a voz do seu João contando suas histórias vão me embalando em pensamentos mágicos e sonoros capazes de me aquietar e fazer desejar que o tempo fosse generoso e não tivesse pressa para passar.

Seus pais nasceram naquele pedaço de terra onde ele também nasceu, há mais de 80 anos. Sua infância e mocidade, como ele mesmo fala, foram vividas ali, trabalhando, plantando e colhendo, pescando e caçando naquelas matas que beiram o rio e seguem mundo afora. Ele lembra que costumavam andar de canoa, mas as enchentes frequentes do rio Ribeira do Iguape as levaram embora e nunca mais foram substituídas, pontes foram construídas, balsas foram instaladas. Hoje só os pescadores usam canoas para pescarias cada vez mais raras e parcas.

Seu João lembra do tempo em que os adultos iam à cidade de Eldorado, no dia da feira, apenas para comprar sal e querosene. Tudo o mais que consumiam era tirado daquelas terras. Plantavam e colhiam tudo em sistema de mutirão. Era muita fartura, conta ele: legumes, verduras, frutas, carne de caça e das galinhas que criavam.

– A vida era uma beleza!

O olho do seu João brilha de emoção quando ele fala daquele lugar, do seu lugar, de onde não quer sair enquanto estiver vivo, enquanto puder escolher ficar. Quer ficar porque ali onde também vivem seus netos e bisnetos, toda sua descendência que, seguindo seus passos, valoriza a terra e continua lutando por ela, uma luta incessante pela sua posse, pelo reconhecimento do pertencimento aos seus ancestrais e pela coragem de enfrentar os desafios como parte de um cotidiano de luta entre seu modo de viver e usufruir daquele espaço e a dos fazendeiros que veem nela apenas o valor que lhes renderá os bananais.

Seu João faz breves pausas para secar os olhos que gotejam teimosas lágrimas, enquanto isso, e tentando disfarçar as minhas, vou esmiuçando aquela casa e me surpreendendo com a criatividade do seu João ao construir objetos que nem ele sabe para que servem, apenas vai fazendo, tecendo, esculpindo, lapidando e falando:

– Quando não sei o que é digo que é pra enfeitar! Não é bonito?

É bonito, sim! É bonito ver como as emoções afloram à medida que vamos falando e sendo ouvidos, que vamos trazendo à tona relatos de memórias afetivas e tendo para quem contar, percebendo que a nossa história, as nossas memórias e os nossos quereres mais intensos não são apenas nossos, se imbricam nos dos outros como aquela plantação e colheita em sistema de mutirão. Nada é meu, tudo é nosso!

Seu João deixou para o final a mais emocionante das revelações, a que me fez encher os olhos de lágrimas e lhe abraçar carinhosamente do modo mais intenso e verdadeiro que já fiz.

Naquela terra onde seu João nasceu e seus netos e bisnetos vivem, ele agora vive sem Esperança. Sua mulher amada, sua doce Esperança partiu há pouco mais de um ano levando com ela sua alegria de viver e seus planos para o futuro, deixando-o sem saber o que fazer da vida.

Me despeço do seu João carregando comigo parte de sua vida e deixando com ele um pouco da minha. Foi uma tarde de trocas fantásticas, de sentimentos diversos, de saudades incontidas, de desejos aflorados e, principalmente, da pura expressão do quanto a vida é boa e bela, mesmo quando o belo vem revestido de um pouco de melancolia, saudades e esperança (segundo seu João, sua Esperança continua existindo só não está presente).

Obrigada, seu João! Seu abraço ainda me enlaça carinhosamente.

 

Socorro Lacerda de Lacerda

13 comentários em “Seu João e sua doce Esperança na Comunidade Quilombola Sapatu

  1. Socorro Lacerda, carinhosamente Kokita, como sensiveis e carinhosas são suas percepções. Adorei saber um pouquinho da sua vivência com Sr João, tão rico de histórias de vida.
    Um beijo carinhoso

  2. Que vivência emocionante! A vida não teria o menor sentido se não tocássemos a alma das pessoas e se elas não tocassem a nossa alma, fazendo o entrelaçado do permitir, conviver, viver e resistir para sobreviver.
    Parabéns por esse projeto encantador!

  3. Que linda experiência, Coquita!
    É maravilhoso trocar vivências e irmos aprendendo as maravilhas, mesmo melancólicas do bem viver.
    Grande abraço e parabéns por esse lindo projeto.

  4. Agradecida por compartilhar essa linda vivência,eu que estava um pouco triste,pois hoje fui ao velório de uma amiga ( vizinha) que criamos nossas filhas muito próximas quando criança.
    Ao ler eu quase posso ver o seu João,neste seu estilo cuidadoso e apaixonado.

  5. Que linda historia, nos remete ao nosso nordeste querido, grata leitura, grande beijo cunhada, continue nos presenteando com seus textos e histórias.

  6. Quanta beleza há na simplicidade e sabedoria dessas pessoas que nos contagiam e nos tocam com suas histórias. E você Socorro como sempre com um olhar sensível, como todo contador de história. Adorei….

  7. Boa noite, minha conterrânea e grande escritora Socorro Lacerda (Amiga Coquita)
    O projeto de contação de histórias Conte Lá Que Eu Conto Cá, traz uma narrativa de valores humanos imprescindível, cuja realidade dos fatos mensurados nos remove a tantas outras vividas e marcadas com sua peculiaridade e obscura aos olhos do tempo. Emocionado e ao mesmo tempo muito grato me deixou a linda história de Seu João,não contiva as lágrimas e ao mesmo tempo muito grato estou em poder está participando desse momento que nos presenteia com seu talento.
    Parabéns,minha amiga! Volto ao tempo’ homem algum é uma ilha’.Obrigado por tudo.
    Um abraço e Boa sorte!

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