A travessia do rio foi o início do deslumbre para um encontro tão mágico. Atravessar o Rio Ribeira do Iguape em uma balsa deslisando lentamente por suas águas barrentas me levou a pensar sobre o que encontraríamos na outra margem do rio. Depois da travessia, num misto de expectativa e otimismo encontramos quem nos indicasse … Ler mais
A curiosidade das crianças tomou conta dos seus corpos como uma comichão, deixando-as muito inquietas. Logo saíram dos lugares onde estavam sentadas e foram, rastejando discretamente, até beirar a colcha de retalhos onde estavam dispostos alguns objetos que eu costumo usar nas contações de histórias.
A sensação que tive foi a de que tocar os objetos, explorar seus sons e espiar suas cores, era mais interessante do que ouvir a história que eu começara a contar. Essa impressão só se desfazia quando a voz de algum personagem se destacava da narrativa e saltava para o espaço composto por tantas novidades.
Não demorou muito para eu perceber que a inquietação que demonstravam era excesso de desejo de usufruir do novo, do que estava posto naquele canto de sala e se misturava ao que imaginavam ser cada um daqueles objetos. Queriam ouvir as histórias, mas também queriam soprar o apito, girar o pião, folhear os livros, olhar encantados o movimento do traca traca e a magia do surgimento das cores da dobradura de papel. Tudo ao mesmo tempo, como se não houvesse tempo suficiente para tanta coisa e para a exploração de cada um dos objetos e brinquedos que viam, alguns deles, pela primeira vez.
No final da contação, foi inevitável o início da exploração de um mundo com infinitas possibilidades. A criação e recriação do brinquedo e da brincadeira tornou-se indicativo para a invenção de novas e necessárias histórias, emolduradas por uma colcha de retalhos que não estava ali por acaso.
A EMEI Bairro Ivaporunduva fica no Quilombo de mesmo nome. É muito simples: duas salas, uma cozinha, banheiros e uma pequena sala com estantes onde livros estão colocados de forma desordenada. Bem que pode ser um espaço de leitura, se feita a devida organização para isso.
Nossa chegada causou curiosidade, embora as crianças se revelassem tímidas e arredias. Não se aproximaram muito, a distância que mantiveram de nós foi suficiente para me inquietar e fazer aguardar o início da contação para saber como se comportariam. Gosto quando participam, perguntam, indagam sobre os objetos que usamos ou questionam o final da história. Estava desejosa de que isso acontecesse.
Comecei a contação um pouco tímida, sem desenvoltura, tateando as palavras, manuseando objetos, expondo instrumentos sonoros. A impressão que eu tinha é de que eu não estava agradando, as crianças não se envolviam.
Enquanto isso, o gato Cristiano Ronaldo passeava livre e imponente por todos os espaços da escola, ora na sala onde estávamos, ora na cozinha ou no pátio, roçando em minhas costas, pulando na colcha de retalhos, em cima da mesa ou no colo de alguma criança.
Em minha tentativa de chamar a atenção, peguei um pião de papel colorido que eu havia feito anteriormente e girei no chão. A mágica aconteceu, as crianças impulsionaram o corpo para frente e arregalaram os olhos querendo saber do que era feito o pião. Porém, é Cristiano Ronaldo quem se joga em cima do pião e com suas patas ariscas tenta pará-lo, provocar a interrupção do movimento que chamara sua atenção. É a partir da travessura e ousadia do Cristiano que as crianças se sentem impulsionadas a também se jogarem para, segundo elas, impedir que o gato destrua o pião e acabe com a brincadeira. A partir daí, elas entram nas histórias transformando o espaço em um lugar de brincadeiras e descobertas.
Terá sido o Cristiano Ronaldo apenas o pretexto para as crianças se libertarem da aparente timidez? Se foi, bendito seja o Cristiano Ronaldo!
A sexta etapa do Projeto de Contação de histórias em escolas rurais – “Conte lá que eu conto cá” – viajou por terras mineiras. Ao longo de quinze dias, viajamos por quatro municípios, treze escolas e vinte sessões de contações de histórias para estudantes das escolas municipais do campo.
Cada cidade e seus moradores, cada escola e grupo de estudantes e educadoras que encontrávamos, nos enchia de contentamento e descobertas pelo encontro e pelo compartilhamento de alegrias e saberes que aquele momento proporcionava a todos nós.
Foi uma etapa muito especial, um reencontro com o projeto e com a explícita confirmação de que contar histórias para crianças e jovens se faz cada vez mais necessário e urgente.
A primeira cidade que visitamos foi Wenceslau Braz, uma pequena e bucólica cidade com uma população de aproximadamente 2,6 habitantes. Um povo acolhedor e simpático, facilmente “puxa” uma boa conversa que pode durar horas, como se todos fôssemos velhos amigos.
No município de Wenceslau Braz, fomos à escola EM João Bárbara da Silva e a CMEI Jacira de Lima Costa, ambas muito aconchegantes, iluminadas e bem cuidadas. Fomos recebidas por pessoas acolhedoras, solícitas, dispostas e carinhosas. As crianças se mostraram animadas e curiosas ao observarem dois estranhos chegando carregados de bugigangas, que mais tarde se revelariam objetos que muito os surpreenderam.
A contação foi uma festa, cada história contada ia provocando espanto, risadas, caras de surpresa e caretas de estranhamento, tudo o que um contador gosta de presenciar.
Depois de três anos sem colocarmos os pés na estrada, devido à pandemia de COVID-19, conseguimos seguir com o nosso projeto de contação de histórias em escolas rurais: Conte lá que eu conto cá.
A região escolhida para recomeçarmos foi a do vale do Rio Ribeira, entre o sul de São Paulo e norte do Paraná, a mesma que havíamos planejado ir antes da forçada interrupção.
Ao chegarmos à cidade de Ribeira, fomos à Secretaria de Educação do Município. Não podíamos ser mais bem recebidos do que fomos, a secretária de educação do município, Paulina Gomes Alves foi tão gentil e nos deixou tão à vontade, que ao começarmos a conversar, já parecíamos velhas conhecidas. Fizemos os combinados para iniciarmos as nossas contações a partir do dia seguinte.
Saímos cedo para irmos à EMEIEF Distrito do Saltinho, primeira escola em que contaríamos histórias. É uma escola rural do município de Ribeira, ainda com salas multisseriadas.
O trajeto até chegarmos à escola foi uma delícia. A estrada extremamente sinuosa, a mata fechada e preservada, a nevoa branqueando aqui e ali a paisagem e belas surpresas a cada curva.
A admiração por tanta beleza foi recompensada por termos voltado com o projeto e com todo o desejo de que sigamos contando histórias, sem interrupções, sem receios, sem duvidar que viajar pelo Brasil, contar e ouvir histórias, conhecer gente e deixar que nos conheçam, são, sem dúvida, elementos e sentimentos que nos energizam e nos fortalecem. Desejamos que nossas histórias deixem em quem as escuta a mesma emoção, alegria, crescimento e contentamento que levamos de cada lugar por onde passamos.
A partir da ida à primeira escola e a todas as outras pelas quais passamos, a supervisora geral Ivanete Cordeira da Silva nos acompanhou e se mostrou bastante solícita, engajada, disposta e receptiva. Nos apresentou a cada um dos gestores, me deu dicas valiosas, tanto em relação às histórias contadas, quanto aos materiais usados, o envolvimento e a forma como deveríamos disponibilizar para as crianças os brinquedos que costumamos levar em nossas contações.
No dia seguinte, fomos à escola EMEIEF Anjo da Guarda. Esta escola é localizada no centro da cidade. Uma escola pequena, bem cuidada e com gente acolhedora que nos acompanhou indicando o melhor lugar para nos instalarmos. Nos deixaram tão à vontade que ficamos seguros e confiantes. Nesta escola fizemos três sessões de contação. Entre alunos e alunas menores ou maiores, a receptividade foi a mesma: alegria, curiosidade, encantamento pelo que falávamos e mostrávamos. Isso nos contagiou de tal forma que ao sairmos de lá estávamos cheios de boas energias e desejo de contar e ouvir muitas outras histórias.
No terceiro dia fomos para a EMEIEF Eunice Dias Batista. Embora soubéssemos que a supervisora Nete nos acompanharia, como tinha feito até então, resolvemos ir mais cedo e sozinhos. Uma forma ousada e inexplicável de pertencimento daquele lugar que já nos parecia tão familiar.
Ao chegarmos à Escola, já nos esperavam ansiosos e afetuosos. Antes de nos organizarmos, fui à porta das salas para cumprimentar professores e professoras, alunos e alunas para demonstrar nossa felicidade por estarmos ali. Uma sala de aula foi suficiente para acomodarmos todos os estudantes. Estendermos nossa colcha de retalhos em lugar tão aconchegante e belo nos fez compreender o quanto é possível ser feliz junto às coisas mais simples. Naquele lugar me senti em casa, me encantei com aquelas carinhas curiosas e ansiosas pelo que eu ia contar, olhos brilhantes refletindo os nossos que transbordavam de alegria. Como foi bom estar ali naquele momento!
Entre uma escola e outra, uma contação e outra, saíamos para conhecer a região. É claro que em uma cidade tão acolhedora, esses novos encontros não seriam diferentes. Conhecemos gente bacana, simpática e sempre disponível a nos receber, dar informações e indicar lugares para irmos, além de mostrar seus talentos e nos presentear com a forma como suas peças e seus produtos eram criados e recriados de forma sutil e sensível, resultando em produtos especiais e cheios de particularidades. Foi assim com o Rodrigo, que nos permitiu acompanhar todo o processo para fazer a rapadura, adoçando nossa estada naquele lugar e nos confundindo entre o cheiro da rapadura com a doçura revestida de experiência e leveza na forma como ia fazendo cada uma das etapas do doce.
A mesma receptividade experimentamos com a artesã Diná Looze e seu esposo, que além de peças belíssimas em cerâmica, ainda produzem um mel puro e saboroso. Com toda sua amabilidade, a Diná fez uma peça de argila com uma folha enorme servindo de decalque (para ela, impressão digital). Ela permitiu que eu tirasse a folha que estava sendo estampada na argila, impossível não se encantar com o resultado, enquanto a folha ia sendo desprendida, toda sua exuberância ia ficando delicadamente marcada por traços retos e curvos. Gente querida que vai ficar sempre em minha memória.
Saímos de Ribeira com a leveza de quem, por alguns momentos, provocou em algumas crianças através das nossas histórias, a curiosidade e espanto tão fundamentais para a aprendizagem de cada um/a de nós. Levamos conosco a alegria por termos tido a oportunidade de conhecer aquele lugar tão especial e aconchegante e a saudade por já termos que ir embora. Acima de tudo carregamos conosco o desejo de voltarmos.
Agradecemos especialmente a todas as crianças que nos ouviram e interagiram conosco, que contaram suas histórias, que riram e se emocionaram com as nossas.
Também agradecemos a forma calorosa e carinhosa com que fomos recebidos pela secretária de educação Paulina Gomes Alves e a coordenadora geral, que carinhosamente chamamos de Nete. Também agradecemos a todo/as os professores e professoras pelo carinho e disponibilidade com que nos receberam e nos incentivaram a continuar por esse caminho que nos faz tão bem.
Toda nossa gratidão.
Até a próxima!
Lucio Lacerda e Socorro Lacerda
Esta é nossa 5ª Etapa na cidade de Ribeira/SP
Essa é nossa 5ª etapa do projeto: Conte lá que eu conto cá