Para chegarmos à cidade de Virgínia – MG, seguimos por uma rodovia, como todas as outras da região, muito sinuosa, o que não esperávamos é que percorreríamos aproximadamente 30 km de estrada de terra e isso nos fez atrasar a viagem em muito mais tempo do que desejávamos. Porém, a surpresa e irritação que experimentamos pela lentidão com que tínhamos que fazer o trajeto devido às condições da estrada, foi recompensada quando ouvimos um barulho de água corrente muito próximo de nós. O que inicialmente nomeei como barulho foi substituído por uma sonoridade que nos transmitiu calmaria e encantamento. Os respingos que atingiam nossos corpos o faziam de forma sensível e refrescante, o farol do carro era tudo o que tínhamos para iluminar aquele lugar e nos revelar a exuberante cachoeira que despontava de dentro da mata. Mais que vê-la, senti a necessidade de ouvi-la, fechei os olhos, deixei que as gotículas de água tocassem meu corpo, respirei fundo e me deixei levar por aquela sensação de plenitude e êxtase. Havia chegado em Virgínia e, a partir dali, reconheci que Virginia também havia chegado em nós.
Na manhã seguinte sentimos que o frio era muito intenso e que o lugar para onde iríamos era mais distante do que pensávamos. Nada que nos desanimasse. A primeira escola foi a EM José Gonçalves Sobrinho, no povoado da Vargem Alegre. Uma escola pequena, aconchegante, com pessoas acolhedoras e simpáticas. Uma sala de aula foi suficiente para juntarmos todas as crianças e fazermos a contação de histórias. Olhos brilhantes e curiosos acompanharam cada uma das falas ou expressões dos personagens que iam sendo apresentados, as cores, os movimentos e os sons eram valorizados e aguardados para serem tocados, reproduzidos, compartilhados.
Outras escolas se seguiram: EM José Ricardo Neto (povoados de Morangal e Marques), EM Profª Leonor Ferreira Porto (povoado São José da Mantiqueira – Gorda), EM Professora Maria José de Souza Bernardes (povoado dos Moreiras) e EM Christovam Chiaradia (área urbana). Lugares lindos, pessoas amorosas, crianças encantadoras. Com sorrisos largos e gentis, fomos acolhidos para momentos muito especiais de troca de saberes e quereres que muito enriqueceram nossa viagem.
Ouvimos histórias contadas pelas crianças, que também mostraram, orgulhosas, os brinquedos que construíram. Saboreei o bolo de fubá feito e servido pela adorável e tímida Marilza, na EM Maria José Souza Bernardes, ouvi o depoimento contagiante das professoras Larissa Giovana Alves Ribeiro e Maria Auxiliadora Evilázio, que trabalham com salas multisseriadas.
A coordenadora Ana Claudia Silva, que nos acompanhou nas escolas rurais, merece um agradecimento especial, sempre nos recebeu com um sorriso discreto, olhos brilhantes e abraço afetuoso. Nos apresentou pessoas, nos levou aos diversos espaços, nos revelou os arredores da escola e suas ondulações geográficas particulares: a mata, a montanha, a estradinha, tudo com a singularidade de que só ali o tempo nos presenteia com um aqui e agora próprios de que, pouco importa o que acontece, além do que vemos e sentimos. A plenitude do que vemos é a revelação da intensidade do que precisamos para continuar vivendo: amorosidade, liberdade, beleza, sonoridade e acolhimento de quem está naquele lugar e de quem por ali passa.
Os abraços e demonstrações de carinho e contentamento no final foram as mais belas e generosas expressões de agradecimento e reveladores do desejo de quero mais.
Uma escola pequena, aconchegante e colorida. A luz do sol penetra facilmente em todos os espaços. Brinquedos estrategicamente espalhados pelos diversos espaços da escola fazem a alegria da criançada: casinhas, balanço, gangorra, cavalinhos que, ao menor impulso provocam um movimento para frente e para trás, piscina de bolinhas, tatames coloridos espalhados pelo chão do pátio, convidando as pessoas a sentarem e descobrirem o que estava para acontecer ali.
Não eram muitas crianças, mas eram encantadoras, sorridentes, curiosas, se jogando dos braços e dos carrinhos na tentativa de pegar tanta coisa colorida que ia saindo daquela mala estranha. As professoras iam chegando carinhosamente, de mãos dadas com as crianças, carregando-as no colo ou empurrando carrinhos para chegarem bem perto de onde estávamos. Ao mesmo tempo que, junto ao Lucio, eu ia organizando o material que usaríamos, ia também olhando a carinha de cada criança e de cada adulto que carinhosamente cuidava delas. Foi um momento encantador. Chupetas, paninhos, fraldas e alguns resmungos e choros fizeram parte da “trilha sonora” de “Bruxa, bruxa, venha a minha festa!” e “O lobo que queria mudar de cor”, as histórias mais curtidas.
O som dos instrumentos que eu apresentava, no intervalo das histórias, quase sempre provocava olhos arregalados e gritinhos, como expressão de surpresa pela diversidade de movimento, cor, material e forma com que cada um se diferenciava do outro. Um espetáculo!
No breve tempo que ficamos na escola, experimentamos diversas sensações e sentimentos que nos acompanharam caminho afora, entre escolas e entre cidades. Porém, nada nos deixou mais admirados e surpresos quanto a forma contundente que uma criança defendeu sua ideia de que o amor era vermelho. Antes de começar a contar a história “Qual é a cor do amor”, de Linda Strachan, perguntei se alguém sabia qual era a cor do amor. Desde o início uma criança respondeu de forma enfática que o amor era vermelho. No final da história, quando a conclusão é de que o amor pode ser de qualquer uma das cores, ou de todas as cores juntas, fui conversar com a criança que continuava insistindo que o amor era vermelho.
– O amor não pode ser de outra cor além do vermelho?
– Não! O amor é vermelho porque o sangue é vermelho.
Procurei não o interromper e ele olhando para mim de forma segura e convincente continuou:
– O sangue é vermelho e leva o oxigênio para o coração, e lá está o amor, então, o coração é vida e o cérebro é espertança.
Depois desse breve diálogo, minha vontade era de contar para todo mundo que eu aprendera uma palavra nova com uma criança pequena que eu acabara de conhecer. Não era uma palavra qualquer, era uma palavra que passou a representar, para mim, a expressão mais assertiva e poética para o desvelamento de algo que nem sempre pode ser desvelado.
Com toda a minha recém adquirida espertança, agradeço grandemente a todas as pessoas da CMEI Mariana Lopes de Oliveira Siqueira, especialmente às crianças, por terem me ensinado tanto.
Recém-inaugurada, a EM Severiano Ribeiro Cardoso é um exemplo de arquitetura que dispensa corredores entre as salas de aulas, permitindo que os estudantes sejam vistos e atendidos da forma mais imediata possível. Ao chegarmos ao prédio, percebemos uma infraestrutura invejável, a importância dada a cada lugar que estava sendo ocupado, uma limpeza impecável e pessoas que valorizam cada espaço com total noção de pertencimento e, por isso mesmo, de forma cuidadosa e responsável.
Quando chegamos, o auditório já estava aberto para nos receber. Cadeiras enfileiradas e também a liberdade para quem preferisse sentar-se no chão e ficar mais próximo do palco. Preferi não usar o microfone e não tive dificuldade em ser ouvida. A atenção, o respeito, a participação, as caras e bocas de surpresa e admiração em determinadas partes das histórias que iam sendo contadas, se revelavam como motivos extraordinários para me encher de contentamento e continuar fazendo a contação da melhor forma possível. Ri junto com cada uma das pessoas que estava ali me ouvindo, me surpreendi com as surpresas que provoquei sem ter a noção de que as provocaria de forma tão intensa e verdadeira. Algumas vezes, precisei parar por alguns segundos entre uma descoberta e outra que as crianças faziam, entre sons, olhares, cores e gestos que nos animavam e encorajavam a prolongar aqueles momentos sem pressa de acabar.
Nada poderia ser mais verdadeiro do que o abraço coletivo que recebi ao final do trabalho. Um emaranhado de braços que circulavam meu corpo e outros corpos numa tentativa genuína de agradecer e de demonstrar que o falado e o ouvido tinham se imbricado e contagiado a todos e todas, permitindo a construção de uma memória que certamente carregariam adiante, assim como eu também carregaria, através do que estava sendo sentido e experimentado.
A colcha de retalhos com objetos diversos e brinquedos divertidos, que servira de tapete para o meu ir e vir entre partes das histórias, se transformara em depósito de objetos disputados pelos estudantes, que buscavam explorar seus sons e suas formas no manuseio, no sopro, no balanço, no olhar atento, buscando compreender o funcionamento daquilo que antes lhes era desconhecido. Brincar, inventar e reinventar novas possibilidades na troca do brinquedo, no gesto, no brilho do olho, na respiração ofegante para chegar primeiro aonde os outros estavam. Tudo era motivo para aproveitar o tempo que não sabíamos até quando ia durar. Tenho certeza de que ninguém ali queria que tudo fosse tão efêmero.
Saí cheia de energia, coragem e certeza de que mais do que lições e provas, a educação precisa de brincadeiras e histórias. Temos motivos mais que especiais para continuarmos nossa jornada em outras escolas, em outros lugares e com outros estudantes que torcemos para serem tão generosos, curiosos, atentos, sorridentes e respeitosos como os da Escola Severiano Ribeiro Cardoso.
A sexta etapa do Projeto de Contação de histórias em escolas rurais – “Conte lá que eu conto cá” – viajou por terras mineiras. Ao longo de quinze dias, viajamos por quatro municípios, treze escolas e vinte sessões de contações de histórias para estudantes das escolas municipais do campo.
Cada cidade e seus moradores, cada escola e grupo de estudantes e educadoras que encontrávamos, nos enchia de contentamento e descobertas pelo encontro e pelo compartilhamento de alegrias e saberes que aquele momento proporcionava a todos nós.
Foi uma etapa muito especial, um reencontro com o projeto e com a explícita confirmação de que contar histórias para crianças e jovens se faz cada vez mais necessário e urgente.
A primeira cidade que visitamos foi Wenceslau Braz, uma pequena e bucólica cidade com uma população de aproximadamente 2,6 habitantes. Um povo acolhedor e simpático, facilmente “puxa” uma boa conversa que pode durar horas, como se todos fôssemos velhos amigos.
No município de Wenceslau Braz, fomos à escola EM João Bárbara da Silva e a CMEI Jacira de Lima Costa, ambas muito aconchegantes, iluminadas e bem cuidadas. Fomos recebidas por pessoas acolhedoras, solícitas, dispostas e carinhosas. As crianças se mostraram animadas e curiosas ao observarem dois estranhos chegando carregados de bugigangas, que mais tarde se revelariam objetos que muito os surpreenderam.
A contação foi uma festa, cada história contada ia provocando espanto, risadas, caras de surpresa e caretas de estranhamento, tudo o que um contador gosta de presenciar.
Depois de três anos sem colocarmos os pés na estrada, devido à pandemia de COVID-19, conseguimos seguir com o nosso projeto de contação de histórias em escolas rurais: Conte lá que eu conto cá.
A região escolhida para recomeçarmos foi a do vale do Rio Ribeira, entre o sul de São Paulo e norte do Paraná, a mesma que havíamos planejado ir antes da forçada interrupção.
Ao chegarmos à cidade de Ribeira, fomos à Secretaria de Educação do Município. Não podíamos ser mais bem recebidos do que fomos, a secretária de educação do município, Paulina Gomes Alves foi tão gentil e nos deixou tão à vontade, que ao começarmos a conversar, já parecíamos velhas conhecidas. Fizemos os combinados para iniciarmos as nossas contações a partir do dia seguinte.
Saímos cedo para irmos à EMEIEF Distrito do Saltinho, primeira escola em que contaríamos histórias. É uma escola rural do município de Ribeira, ainda com salas multisseriadas.
O trajeto até chegarmos à escola foi uma delícia. A estrada extremamente sinuosa, a mata fechada e preservada, a nevoa branqueando aqui e ali a paisagem e belas surpresas a cada curva.
A admiração por tanta beleza foi recompensada por termos voltado com o projeto e com todo o desejo de que sigamos contando histórias, sem interrupções, sem receios, sem duvidar que viajar pelo Brasil, contar e ouvir histórias, conhecer gente e deixar que nos conheçam, são, sem dúvida, elementos e sentimentos que nos energizam e nos fortalecem. Desejamos que nossas histórias deixem em quem as escuta a mesma emoção, alegria, crescimento e contentamento que levamos de cada lugar por onde passamos.
A partir da ida à primeira escola e a todas as outras pelas quais passamos, a supervisora geral Ivanete Cordeira da Silva nos acompanhou e se mostrou bastante solícita, engajada, disposta e receptiva. Nos apresentou a cada um dos gestores, me deu dicas valiosas, tanto em relação às histórias contadas, quanto aos materiais usados, o envolvimento e a forma como deveríamos disponibilizar para as crianças os brinquedos que costumamos levar em nossas contações.
No dia seguinte, fomos à escola EMEIEF Anjo da Guarda. Esta escola é localizada no centro da cidade. Uma escola pequena, bem cuidada e com gente acolhedora que nos acompanhou indicando o melhor lugar para nos instalarmos. Nos deixaram tão à vontade que ficamos seguros e confiantes. Nesta escola fizemos três sessões de contação. Entre alunos e alunas menores ou maiores, a receptividade foi a mesma: alegria, curiosidade, encantamento pelo que falávamos e mostrávamos. Isso nos contagiou de tal forma que ao sairmos de lá estávamos cheios de boas energias e desejo de contar e ouvir muitas outras histórias.
No terceiro dia fomos para a EMEIEF Eunice Dias Batista. Embora soubéssemos que a supervisora Nete nos acompanharia, como tinha feito até então, resolvemos ir mais cedo e sozinhos. Uma forma ousada e inexplicável de pertencimento daquele lugar que já nos parecia tão familiar.
Ao chegarmos à Escola, já nos esperavam ansiosos e afetuosos. Antes de nos organizarmos, fui à porta das salas para cumprimentar professores e professoras, alunos e alunas para demonstrar nossa felicidade por estarmos ali. Uma sala de aula foi suficiente para acomodarmos todos os estudantes. Estendermos nossa colcha de retalhos em lugar tão aconchegante e belo nos fez compreender o quanto é possível ser feliz junto às coisas mais simples. Naquele lugar me senti em casa, me encantei com aquelas carinhas curiosas e ansiosas pelo que eu ia contar, olhos brilhantes refletindo os nossos que transbordavam de alegria. Como foi bom estar ali naquele momento!
Entre uma escola e outra, uma contação e outra, saíamos para conhecer a região. É claro que em uma cidade tão acolhedora, esses novos encontros não seriam diferentes. Conhecemos gente bacana, simpática e sempre disponível a nos receber, dar informações e indicar lugares para irmos, além de mostrar seus talentos e nos presentear com a forma como suas peças e seus produtos eram criados e recriados de forma sutil e sensível, resultando em produtos especiais e cheios de particularidades. Foi assim com o Rodrigo, que nos permitiu acompanhar todo o processo para fazer a rapadura, adoçando nossa estada naquele lugar e nos confundindo entre o cheiro da rapadura com a doçura revestida de experiência e leveza na forma como ia fazendo cada uma das etapas do doce.
A mesma receptividade experimentamos com a artesã Diná Looze e seu esposo, que além de peças belíssimas em cerâmica, ainda produzem um mel puro e saboroso. Com toda sua amabilidade, a Diná fez uma peça de argila com uma folha enorme servindo de decalque (para ela, impressão digital). Ela permitiu que eu tirasse a folha que estava sendo estampada na argila, impossível não se encantar com o resultado, enquanto a folha ia sendo desprendida, toda sua exuberância ia ficando delicadamente marcada por traços retos e curvos. Gente querida que vai ficar sempre em minha memória.
Saímos de Ribeira com a leveza de quem, por alguns momentos, provocou em algumas crianças através das nossas histórias, a curiosidade e espanto tão fundamentais para a aprendizagem de cada um/a de nós. Levamos conosco a alegria por termos tido a oportunidade de conhecer aquele lugar tão especial e aconchegante e a saudade por já termos que ir embora. Acima de tudo carregamos conosco o desejo de voltarmos.
Agradecemos especialmente a todas as crianças que nos ouviram e interagiram conosco, que contaram suas histórias, que riram e se emocionaram com as nossas.
Também agradecemos a forma calorosa e carinhosa com que fomos recebidos pela secretária de educação Paulina Gomes Alves e a coordenadora geral, que carinhosamente chamamos de Nete. Também agradecemos a todo/as os professores e professoras pelo carinho e disponibilidade com que nos receberam e nos incentivaram a continuar por esse caminho que nos faz tão bem.
Toda nossa gratidão.
Até a próxima!
Lucio Lacerda e Socorro Lacerda
Esta é nossa 5ª Etapa na cidade de Ribeira/SP
Essa é nossa 5ª etapa do projeto: Conte lá que eu conto cá