Contação de Histórias online

Olá pessoal, tudo bem?
Com o vírus solto por aí o Projeto “Conte Lá que eu conto cá”, de contação de Histórias em escolas rurais, também precisou ficar em quarentena. Por isso, não viajamos para nossa quinta etapa que seria no Vale do Jequitinhonha, onde já estava agendada todas as contações . Para contribuirmos um pouco com “o que fazer com as crianças em casa”, resolvemos contar as histórias e postar no meu canal do You Tube. Espero que curtam e opinem para que melhoremos cada vez mais.
Um abraço!

Generosidade! Essa é a palavra

 

 

Uma quadra coberta e espaçosa foi o lugar que utilizamos para contar histórias na cidade de Palmópolis – MG. Concentradas nesse local, as escolas EM Cecília Meireles e Pré Escola Pequeno Notável foram divididas em seis grupos para as seis sessões anteriormente agendadas. As sessões aconteceram nos dias 25 e 26 de outubro, nos períodos vespertino e matutino.

Apesar de ter sido contações intensas e numerosas não houve cansaço ou desânimo. Cada turma que chegava trazia, em sua agitação inicial e correria para ficar nos lugares da frente (embora sentadas no piso rústico da quadra), uma energia que se renovava cada vez que as turmas iam se alternando. Com as crianças, chegavam também professoras, professores e educadores em geral, animados, igualmente curiosos, atenciosos, dispostos a organizar as turmas, fazer companhia às crianças e ouvir as histórias com a mesma atenção e respeito com que as crianças também ouviam. Ouso dizer que crianças eram todas as pessoas que estavam ali, inclusive nós que tentávamos contar as histórias como se fosse a primeira vez.

Com a preocupação de acompanhar as várias turmas de crianças e garantir que tudo desse certo com cada uma delas, os educadores assistiram muitas vezes a contação da mesma história. Porém, nas observações que costumo fazer da reação das pessoas para que costumam assistir, não vi cansaço ou desânimo nessas repetições. A busca de novas versões para a mesma história, novos gestos em verdadeiras dramatizações, elementos sendo acrescentados ou reduzidos, ênfase nas falas de alguns personagens, improvisações, tudo era motivo para que as histórias ganhassem novas nuances que ouvidos atentos e olhos curiosos reconheciam como diferentes. Um desafio que se tornou uma gostosa brincadeira entre eu e os ouvintes.

Na maioria das contações de histórias, ao terminarmos a apresentação, as crianças desejam conhecer os brinquedos ou adereços utilizados, brincar, manipular, observar para descobrir como eram feitos os brinquedos artesanais e contar suas próprias histórias usando os mesmos objetos que acabaram de ser usados por mim. Em Palmópolis, essa ordem se inverteu. O manuseio de objetos foi trocado pelo chegar perto, abraçar, querer saber um pouco mais sobre nós, tocar nas roupas coloridas e fazer verdadeiras cirandas entre abraços carregados de movimentos e a chegada de mais gente formando uma massa de carinho e de gratidão que eu ainda não havia experimentado. Calor humano, respeito mútuo, generosidade. Isso mesmo! Generosidade foi a palavra materializada nos gestos de quem, no abraço ou no olhar, se sentia juntinho uns dos outros.  Abraços revestidos do contraste entre proximidade e distância como se o espaço físico se diluísse em um tempo que não pretendia ser consumido pela buzina do ônibus que os esperava nem pelo som da campainha indicando que o tempo do faz de conta havia chegado ao fim.

Em Palmópolis não foi aula, não foi contação de histórias em que um conta e o outro ouve, onde um ensina e o outro aprende, foi encontro de saberes, de quereres, de aprender mútuo e genuíno sem a preocupação dos rigores que a escola pensa ser fundamental para a aprendizagem. Ensinei e aprendi que no gesto se constrói o respeito, no ouvir percebe-se o compartilhar dos saberes, no falar se divulga o aprendido, os vários odores que aquela gente e aquele espaço exalavam impregnavam meus sentidos de “sentido” sobre o que fazíamos ali, dos valores que experimentávamos, da importância de conhecer gente e se fazer gente, na grandiosidade de, depois do abraço, não sermos mais os mesmos, principalmente porque todos nós perdemos o medo de experimentar o novo e por isso mesmo aprendemos a lidar com ele.

Ao sair do encontro com pessoas tão especiais, trouxe comigo a bem aventurança de sermos humanos, o exemplo da disposição e disponibilidade de educadores e educadoras que acreditam no que fazem e arregaçam as mangas para realizar o que acreditam, para deixar suas marcas impressas nas memórias que estão sendo construídas em crianças e adolescentes que se espelham nesses educadores e educadoras para continuarem querendo ser muito mais do que essa sociedade injusta parece lhes oferecer ou reservar.

Em Palmópolis, a grandiosidade do ensinar e do aprender está no olhar atento de quem os acompanha nas saídas e chegadas à escola, nos intervalos entre aulas, na fila para pegar o lanche, nos momentos de brincadeiras do recreio, na espera pela atividade “diferente” daquela do cotidiano em que o descarregar de materiais estranhos vai ganhando forma em uma colcha de retalhos e uma mala que, quando aberta, pode fazer sair de dentro dela a simplicidade de uma semente que nunca germinará porque fora queimada, ou um lobo insatisfeito com sua aparência e querendo  mudar de cor para depois descobrir que o bom mesmo é ser apenas lobo.

Bom mesmo foi ter tido a oportunidade de conhecer aquelas pessoas que com seu olhar atento aguçam os nossos olhares para reconhecermos que somos importantes no que fazemos e, como o lobo nos ensina, ser quem a gente é: “é o  maior barato”.

Obrigada a todas as pessoas que nos rodearam e nos abraçaram, que nos fizeram ensinar e aprender de uma forma tão bela, que nos deram o carinho que tanto precisamos para seguir contando as nossas histórias e acreditando que, dessa forma, deixamos por onde passamos a nossa esperança em ver devidamente valorizada a escola enquanto espaço com múltiplas possibilidades e levamos conosco o sentido da dialeticidade do aprender e do ensinar como prática construtora do saber com seus sujeitos em movimento e humanizados.

Poderia ter sido mais uma contação de histórias como as muitas outras que já fizemos no decorrer do nosso projeto. Se assim fosse, experimentaríamos alegrias infindas, recepções calorosas, ia parecer tudo muito óbvio, porém, como diz Paulo Freire: “A experiência nos ensina que nem todo óbvio é tão óbvio quanto parece”.

Obrigada e contem sempre conosco.

 

Socorro Lacerda e Lucio Lacerda

Girando ao som dos tambores

 

Após uma contação de história e outra costumamos sair para conhecer os arredores da escola onde estamos, conversar com as pessoas, observar as crianças, fotografar a rotina do lugar etc. Muitas vezes nos deparamos com situações belíssimas e raras para nós que vivemos em uma cidade grande como São Paulo. Por exemplo, já nos deparamos com canários vindo comer xerém jogado por um morador e agradecendo com seu belo e inconfundível canto, um homem no terreiro de sua casa debulhando espigas de milho seco para jogar para as galinhas, ou ainda, pararmos no canto da cerca para deixarmos a boiada passar.

          Na cidade de Palmópolis o que nos chamou a atenção não foi algo que visualizamos, diferente das outras vezes em que o olhar “chegava” primeiro e nos chamava para uma aproximação, lá foi o som que nos fez parar por um instante para tentar localizar de onde vinha aquela música.

          A curiosidade tomara conta de nós e foi impossível não querer saber de onde vinha aquele som que mesmo de longe começou a nos contagiar. Perguntamos para duas jovens que estavam por perto, uma delas extremamente solícita respondeu que vinha da casa da Maguidá. Perguntei também sobre o que se tratava e ela falou:

         – Ela deve tá ensaiando a ciranda, ela faz um monte de coisa!

        Depois disso, apontou para onde ficava a casa da Maguidá e fomos até lá.

          Ainda vestida com a roupa que uso para as contações de histórias, um vestido bordado por mim com flores muito coloridas e chamativas, descemos parte de uma das muitas ladeiras da cidade até chegarmos, segundo a informação que tivemos, a casa da Maguidá. Ao chegarmos presenciamos uma roda formada por senhoras e jovens cantando, dançando de forma circular e levando até o centro da roda alguém que entoava uma resposta para a música que estava sendo cantada pelas pessoas que formavam a grande roda.

          Cheguei silenciosamente tentando não atrapalhar aquela cena tão bela. Foi inútil. Nossa chegada provocou olhares admirados e a paralisação da cantiga e dos tambores, talvez por causa do vestido tão diferente e colorido, ou por nunca terem nos visto na cidade. Uma jovem senhora, que falou seu nome pausadamente, se antecipou para perguntar quem éramos. Nos apresentamos e lhe contei rapidamente o que estávamos fazendo ali, depois perguntei-lhe se podíamos ficar assistindo aquela dança. A resposta veio acompanhada de um largo sorriso, da apresentação do grupo e de um convite:

          – Sou Maguidá e esse é o grupo Cirandeiras Canta Pra Mim, faço parte de uma cooperativa que acolhe artistas da terra e tenta não deixar a cultura popular morrer. Mas entre na roda, não fique só olhando!

          Não titubeei, entrei na roda, dancei, tentei aprender rapidamente os passos, as músicas e suas letras simples ditas cadenciadamente e acompanhada por tambores. Com rodeios diante de si mesma e paradas à frente de alguém que estava na roda para lhes substituir no círculo maior, as pessoas se animavam para fazer o melhor que podiam numa simpática demonstração do que eram capazes de fazer, numa forma quase inconsciente de me ensinar a dançar como elas já faziam.

          Maguidá era exigente, a qualquer descompasso ela mandava parar os tambores e, tomando o lugar de quem estava dançando, mostrava como deveria ser feito determinado passo ou como era fundamental a dança rodada e o sorriso aberto.

          Me causou uma grande alegria ver que, apesar da maioria das participantes serem idosas, a roda também era composta por jovens, desmistificando atividades que colocam os idosos como grupo de “terceira idade”. Aqueles jovens são a garantia ou a tentativa de garantir que a cultura tradicional popular não morra junto com aquelas pessoas que a receberam dos seus pais e avós e, por isso, é tão valiosa. Como dar continuidade às tradições de um povo se só os que já a conhecem participam das encenações ou dos grupos que as produzem? Sem crianças e jovens participando de algo junto aos idosos, será que não há um esvaziamento de atividades que poderiam ser oportunidades de trocas ricas e de aprendizagem mútua? Por isso, particularmente, sou contra essa denominação “terceira idade”, por tentar fazer da idade algo que distancia umas pessoas das outras, como se os idosos precisassem participar de grupos específicos para serem valorizados ou atendidos em suas necessidades, principalmente em relação ao ócio. É justamente a troca de saberes entre as pessoas de todas as idades que faz a riqueza e a beleza de encontros, seja para ensinar ou despertar habilidades, seja, simplesmente, para festejar a vida e o que ela oferece de oportunidades nos próprios encontros, organizados ou não.

          Isso Maguidá sabe fazer. A roda das cirandas é composta por jovens e idosas que dançam o mesmo passo e rodopiam, em volta de si mesmo, mostrando toda graça e leveza que só a dança é capaz de proporcionar. A Associação Dos Artesãos De Palmópolis – Aapa – MG, que ela preside, é composta por pessoas da zona rural ou urbana, homens ou mulheres, independentemente da idade. A associação promove o encontro e a organização dos artesãos para a concentração de seus trabalhos em um espaço, na cidade de Palmópolis, onde são expostos e ficam à venda, possibilitando que artesãos anônimos reconheçam e valorizem a arte de cada um, além de viabilizar a chegada desses produtos e manifestações artísticas a diferentes lugares. Um belo trabalho! Sem essa oportunidade, certamente, esses artistas estariam estagnados no seu próprio saber e nos locais onde moram, isolando-se e vendo o que fazem como se o produto do trabalho de cada um fosse apenas algo diferente, sem ser lhe dado o devido valor.

          Não pensem que é fácil levar adiante projetos como esses. A cultura, de um modo geral, vem cada vez mais sendo desvalorizada por aqueles que poderiam incentivar e patrocinar, reduzindo a arte a algo desnecessário na vida das pessoas. Com aquelas pessoas que teimosamente seguem lutando, nesse caso, a cultura popular sobrevive de forma digna como entretenimento e como valorização de um produto material e imaterial que precisa ser valorizado mais que nunca.

          Maguidá é guerreira, não desiste fácil, não se abate. É teimosa e enfrenta as dificuldades de levar trabalho tão importante aos mais diversos lugares, buscando patrocínios e recebendo “nãos” ou “sins” como parte de um processo criativo e necessário para a continuidade de sua luta. Além de abraçar essa luta cotidiana, ainda tem tempo de levar os artesãos para feiras, convenções e apresentações em todos os lugares para os quais são convidados ou que ela se faz convidar, e de bordar poemas em seus vestidos como forma de tornar visual aquilo que poderia ser apenas um devaneio.

           Para aquele grupo, dançar não é apenas bailar e mostrar suas roupas, muitas vezes confeccionadas pelas próprias mulheres, não é a garantia de dar continuidade a uma expressão artística nem o ajuntamento de mulheres que não tem o que fazer. É tudo isso e mais a delicadeza do encontro, a generosidade de quem o promove, a gratidão pelo recebimento dos saberes de seus antepassados, a experiência sendo compartilhada, a provocação de sorrisos expressivos que certamente apenas a luta cotidiana não provocaria, o som dos tambores e das canções invadindo e contagiando a cidade como um chamado para quem ainda não sabe o que está acontecendo, o arrebatamento de quem se depara e se surpreende com tanta energia e vivacidade, o convite para quem vai chegando entrar na roda, a própria roda que gira sonhos, desejos, alegrias, esperanças, entusiasmo, contentamento, prazer, regozijo, jovialidade e os mais diversos sentimentos que compõem o ser e querer ser de pessoas que sabem o que fazem e não guardam apenas para si mesma.

          O tempo não foi generoso e em uma hora que pareceu um piscar de olhos, chegou o tempo de ir embora contar nossas histórias para crianças que nos esperavam. Entretanto, Maguidá quer um registro de tudo o que vivemos naquele encontro, propõe uma fotografia e destaca meu vestido como parte do cenário onde as saias e os instrumentos musicais apresentados orgulhosamente emolduram um quadro que tinha começado a se compor quando entramos naquela roda e dançamos como se já nos conhecêssemos.

          Imaginei que aquela cena e todos os seus elementos fosse o registro da finalização do encontro, não fosse uma voz alegre falando enquanto se posicionava também para a foto:

         – Peguem o estandarte para que ele também apareça.

        Ao observar a foto me perguntei: seria o estandarte que precisava aparecer na foto, um elemento simbólico de tudo o que havia acontecido naquela tarde? Com estandarte ou não, fotografia ou não, o que ficou mesmo em minha memória, e vou guardar com extrema alegria, é o som dos tambores, o girar daquela roda e os abraços que foram se entrelaçando no meu corpo e na minha alma.

          Obrigada à Maguidá e ao grupo Cirandeiras Canta Pra Mim por nos proporcionar encontro tão rico e tão desejoso de novos encontros.

 

Socorro Lacerda (Coquita) e Lucio Lacerda

 

Comunidade Quilombola Paraguai

“A Comunidade Quilombola Paraguai, pelo que nossos antepassados falam, era só mata e vieram os escravos que fugiram da escravidão e se refugiaram aqui nas matas e pelo que meus avós falam, antes aqui não tinha limite de cerca de nada, era tudo junto, todo mundo podia criar animal e plantar, só que no decorrer dos anos vieram os fazendeiros e hoje nós estamos bem apertados, limitados mesmo. Aqui, essa área da escola, por exemplo, é uma área que tá na mão dos fazendeiros, os arredores todos são dos fazendeiros. Nós somos uma comunidade que tem 60 famílias e, dentro dessas 60 famílias, nossa área está bem limitada, mas nós estamos na luta, buscamos pelos nossos direitos e vamos ver se nós conseguimos nossos direitos quilombolas. Nos últimos anos está mais difícil ainda.” (Depoimento – Neuzelia Marques de Matos )

Essa fala da professora Neuzelia me fez pensar como a luta pela terra, mesmo que esta já lhes pertença de fato, ainda necessita de uma longa jornada para que se viva esse direito. Historicamente, os donos da terra eram quem podia mais, quem tinha condições de fincar sua estaca e delimitar seu território independente de a quem pertencesse determinado pedaço de terra. Continua sendo até hoje com os que se acham donos do poder ou confiantes na impunidade. Diferente disso, quando os antepassados da professora Neuzelia chegaram aqui, onde vivem até hoje, as terras ainda não tinham dono.

Depois de ouvir esse depoimento fiquei bastante curiosa para saber como, uma pessoa que tem luta tão desafiadora pela terra que pertenceu aos seus antepassados, lida com uma turma de alunos que também mora na comunidade que antes pertenceu a seu povo sem limites de cercas. A monitora Nagila Matos Cunha, (sua prima) e a grande maioria dos alunos é da própria comunidade.

Ao nos acomodar em uma sala da escola, contei minhas histórias, conversei com os alunos, fui ao “terreiro” da escola brincar com as crianças e tomei um café com os famosos biscoitos mineiros que nos foi servido em um recipiente coberta com um paninho “alvo” que só vendo. Ainda tive tempo de apreciar o florido jardim que fora plantado com cuidado e delicadeza.

A luta de sempre daquela comunidade não tirou a alegria de ninguém, todos estampavam no rosto moreno um sorriso escancarado e a inquietação de olhos que saltitavam curiosos tentando adivinhar qual era o som produzia pelos instrumentos que eu manuseava (usei apitos com sons de pássaros para contar algumas histórias), ou que brinquedo era aquele que ao fazer girar provocava um som estridente e cadenciado (eles não conheciam o rói-rói – brinquedo nordestino). A festa daquele momento se contrapunha a luta cotidiana para se viver com dignidade. A mesma luta que extrapola a questão da terra e invade outras questões sociais, relacionadas a escola e a reclamação pelo funcionamento efetivo do posto médico, anexo a escola.

Além de todas essas questões, um acontecimento fascinante percebido na Escola Enedina Alves Brandão foi que as crianças contavam histórias que ouviram dos pais ou dos avós. Mesmo identificando o uso de celulares com algumas crianças o costume das histórias contadas, em algumas famílias, ainda permanecem. Uma dessas histórias que muito me encantou foi contada a aluna, Ana Lara, por seu pai.

Alunos uniformizados, educados, prontos para nos receber de forma calorosa e dispostos para nos mostrar as brincadeiras que sabiam e comentar as histórias que ouviram de mim. Pediram para manusear e brincar com os materiais que usamos, nos mostraram os cartazes que haviam feito e decoravam a sala de aula, os livros que tinham em uma estante no canto da sala, tudo com uma alegria contagiante.

Foi difícil sair dali, ainda mais quando a professora Neuzelia falou que depois que saísse da escola ela, junto com sua família, iam colher hortaliças e preparar temperos para vender na feira livre que aconteceria no dia seguinte na cidade de Felisburgo. Lamentei não poder ir junto fazer a colheita. Seria uma excelente oportunidade de vivenciar o cotidiano de pessoas que tirar da terra o produto como resultado de um trabalho árdua em terra que ainda não têm garantia de ser de quem está produzindo alimentos que lhes servem de sustento. Adoraria sentir o cheiro daquela terra perfumada pelas ervas daquela colheita, pela terra molhada com água vinda de um poço e pela companhia de mãos calejadas de quem não tem medo de trabalhar plantando, colhendo e lutando por uma terra que já lhes pertence.

Não pude ficar para colher as hortaliças e preparar os temperos, mas no dia seguinte fui à feira abraçar minha já amiga Neuzelia, comprar seus produtos e me surpreender com as pessoas que encontrei junto a ela: seu pai e sua filha, três gerações de uma mesma família buscando de forma digna sobreviver em um mundo tão injusto.

Foi na Comunidade Quilombola Paraguai que abracei e me senti abraçada, que me identifiquei com a educação feita de forma tão genuíno e, principalmente com a certeza de que “a luta é todo dia.”

 

Socorro Lacerda de Lacerda

 

 

Subindo, sempre subindo…

Tinham nos avisado que a Cidade de Santo Antonio do Jacinto ficava em cima da montanha e que “quando você pensa que já chegou, ainda tem mais estrada para subir”. De tanto ouvirmos isso, fomos prontos para uma longa subida. O que não falaram com a mesma ênfase foi que para chegar aquela cidade a paisagem era tão exuberante que subir não foi nenhum problema.

Apesar de termos percorrido 107 quilômetros de estrada de terra, o trajeto foi feito com tranquilidade e, mesmo quando algum trecho da estrada não era dos melhores e o Lucio reclamava falando que era uma vergonha ainda ter estradas naquelas condições, eu justificava dizendo que, se a estrada fosse asfaltada certamente não teríamos tempo para apreciar tamanha beleza.

Entre montanhas e vegetação nativa da mata atlântica, pedras gigantescas pareciam ter sido colocadas a mão, estrategicamente, como decoração de um jardim particular. Pedras cortadas e seus retalhos despojados por caminhos íngremes que não teria a menor beleza se fosse diferente daquilo. A montanha vista ao longe, ora de um lado do caminho, ora do outro, de repente aparecia à nossa frente, majestosa, imponente, como se nada além dela precisasse existir. Uma brincadeira de esconde-esconde que só a natureza e os caminho traçados pelos pés de homens e mulheres que por ali passaram durante séculos era capaz de nos fazer entrar nessa brincadeira.

Quando mais uma gigantesca pedra surgiu diante de nós, nos demos conta que havíamos chegando a Santo Antônio do Jacinto, mas e onde está a cidade? Nos perguntamos duvidosos de que a cidade era realmente aquelas poucas casas, ao pé daquela pedra, que as deixavam ainda menores.

Resolvemos perguntar para alguém que encontrássemos pelo caminho. Não foi fácil encontrar “alguém”. As ruas (ladeiras) estavam desertas e isso também nos inquieto. Em baixíssima velocidade fomos seguindo o que nos parecia ser uma rua até avistarmos mais adiante, uma jovem que seguia a passos lentos:

– Por favor, aqui é a cidade de Santo Antônio do Jacinto?

Um pouco assustada pela inesperada chegada, ela respondeu que sim, com bastante simpatia.

– E como fazemos para chegarmos até o centro da cidade?

Ela olhou, surpresa e indecisa como que admirada por não sabermos encontrar o centro de uma cidade tão pequena e respondeu erguendo o braço em direção a rua a nossa frente.

– Pode ir rompendo!

Ir rompendo. Embora no dicionário romper signifique eclodir, aparecer, brotar, desabrochar, nascer, surgir. Dali pra frente “ir rompendo” foi nosso mote para seguir em frente, não pegar atalhos, não parar no meio do caminho, não desistir, vislumbrar um belo futuro, ir além e, consequentemente, chegar aos lugares onde desejávamos chegar e encontrando pessoas, que assim como nós, também estavam desejosas por romper com a mesmice do que lhes eram impostos.

Vamos romper juntos! Vamos contar histórias!

Socorro Lacerda de Lacerda

Conte Lá Que Eu Conto Cá
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.