Quando as apresentações preparadas pelos alunos e alunas da Escola Manoel Procópio de Araújo, no distrito do Socorro, começaram, embora estivessem atrasadas, crianças e jovens se comportavam com uma certa tranquilidade, apenas exibiam olhos inquietos e brilhantes pelas novidades que esperavam acontecer ali.
A professora Socorro Guimarães fez a abertura das atividades recitando um cordel de sua autoria, onde falava do que havia preparado para aquela manhã e da importância da presença de uma contadora de histórias como continuidade do trabalho que faziam em projetos para o incentivo da leitura.
A apresentação de um grupo de estudantes da escola, organizado e ensaiado pela Cacá, mãe de uma aluna, foi uma encenação do livro “A casa Sonolenta”, de Audrey Wood. Com falas, músicas, figurinos e coreografias acrescentadas ao texto original, virou uma peça que muito encantou a todos. Enquanto isso, já vestida com a bata que contaria as histórias, esperei minha vez sentada ao chão junto aos demais expectadores numa forma descontraída de me sentir um deles.
Comecei minha apresentação saindo de onde eu estava e cantando suavemente a música “Meninos”, de Juraildes da Cruz, que tenho usado para iniciar algumas das atividades de contação:
“Dizem que verrugas
são estrelas
Que a gente conta
Que a gente aponta
Antes de dormir, dormir, dormir
Eu tenho contato
Mas não tem nascido
Isso é estória de nariz comprido
Deixe de mentir, mentir, mentir
Os sete anões pequeninos
Sete corações de meninos
e a alma leve, leve, leve
São folhas e flores ao vento
O sorriso e o sentimento
da Branca de Neve, neve, neve
Não sou tanajura
mas eu crio asas,
Com os vagalumes
eu quero voar, voar, voar
O céu estrelado hoje é minha casa
Fica mais bonita
quando tem luar, luar, luar
Quero acordar
com os passarinhos
Cantar uma canção
com o sabiá”
Todos ficaram surpresos por eu sair cantando entre eles, certamente esperavam que o início acontecesse onde eu havia estendido a colcha de retalhos.
A primeira história que contei foi “Qual é a cor do amor?”, de Linda Strachan. Ao fazer a pergunta que dá nome ao livro, e que inicia a história, e exibir um tecido com aplicação em feltro do elefantinho cinzento, personagem que faz a pergunta, a plateia não esperou o personagem seguinte responder. Imediatamente responderam de forma uníssona que o amor era vermelho. Essa resposta foi sendo repetida cada vez que o elefantinho fazia essa mesma pergunta para vários outros personagens. Insistiram que a cor do amor era vermelha praticamente até o final da história quando muitas cores já haviam sido ditas. Finalmente, assim como o elefantinho cinzento, compreenderam que o amor pode ser de qualquer cor, que o amor é de todas as cores. Como também usei lenços coloridos, confeccionados em um tecido leve e transparente, ao falar das cores ditas pelos personagens, no final da história os lenços foram sendo jogados levemente para o alto de modo que houve momentos que mais de uma cor flutuava ao meu redor. Nesses momentos, os olhos de quem assistia a apresentação já não se voltavam para mim, silenciosamente, seguiam o preguiçoso movimento dos tecidos que se entrelaçavam, uns aos outros e entre si mesmos até caírem delicadamente ao chão. Acredito que delicadeza foi a palavra e o sentimento mais adequado, mais valorizado, o que mais se aproximou de tudo o que sentia e do que eu vivia.
Um belo início para uma contação de histórias que estava apenas começando e já revelava a participação efetiva e animada das pessoas que estavam ali dispostas a ouvir e compartilhar suas histórias, expectativas e experiências.
Entre uma história e outra houve improvisações minhas, comentários pertinentes deles, sorrisos espontâneos nossos. Uma grande festa onde nos misturamos do início ao fim. Sem cerimônias nos colocamos uns diante dos outros como em um reencontro, apesar de termos acabado de nos conhecer. Quanta alegria!
A história “O menino que colecionava guarda-chuvas”, de Alexandre Castro, fala de um menino que adorava guarda-chuvas e até os colecionava. As pessoas se perguntavam por que ele não preferia brincar com livros, carrinhos e jogos. Segundo ele, para brincar com o objeto era preciso ter muita criatividade. Enquanto conto, dramatizo cada uma das possibilidades que o menino encontra para transformar o guarda-chuvas e brincar pra valer: um guarda-chuvas pode ser uma espada, pode ser um pião, pode ser uma gangorra, pode ser uma guitarra, pode ser um gancho de pirata, pode ser uma bengala, pode ser um escudo medieval e também pode ser usado para apagar a luz antes de dormir.
Além de tentar adivinhar o próximo brinquedo que o guarda-chuvas poderia se transformar, no final da história eles continuaram tentando encontrar outras possibilidades, outras formas de brincar. Falavam animadamente que um guarda-chuvas também pode ser uma espingarda, pode ser um esconderijo, pode ser um instrumento musical etc. Era como se não quisessem que a história acabasse, sentiram-se instigados a usar a criatividade para também serem capazes de brincar com algo sem forma definida ou exclusiva, com algo que, como dizia o personagem: é preciso ter muita criatividade. Logo percebi que para aquela turma criatividade não lhes faltava.
Em cada uma das histórias contadas, falas improvisadas e material apresentado, as crianças não se contentavam em ouvir, elas se entusiasmavam com as histórias de tal forma que trouxeram para si a possibilidade de brincar com as palavras como se brinca com as coisas. Essa forma de dialogar com o outro e com a própria história me deixou extremamente à vontade para fazer da continuação da atividade momento leve, descontraído e alegre compartilhado com quem, de fato estava interessado em extrair daquele momento o melhor, o mais precioso, o real valor da interação com os outros.
Ao terminar a atividade muitas foram as crianças e os adultos que vieram falar com o Lucio e comigo, manusear os objetos da contação, querer saber quem os tinha feito e como se fazia. Durante todo o tempo em que ficamos na escola, se mostraram naturalmente curiosos, atentos, educados, atenciosos, gentis. Sempre prontos para nos ajudar, tanto mostrando alguma atividade que haviam feito, quanto carregando “nossas coisas” de um lugar para outro. Uma verdadeira festa que só foi interrompida quando percebemos que o tempo havia passado rápido demais e que o almoço já havia sido servido. Um almoço especial preparado e servido por Lourdes, Fátima, Neuza e Fafá, que não economizaram no sabor, no cheiro e na beleza da mesa posta. A animação de todos nós que cercamos aquela mesa e nos servimos fartamente, nos permitia dar continuidade aos assuntos iniciados em outros espaços e acrescidos de comentários sobre as apresentações feitas. O ato de comermos juntas fez-me lembrar de Madalena Freire: É comendo junto que os afetos são simbolizados, expressos, representados, socializados. Pois comer junto, também é uma forma de conhecer o outro e a si próprio. A comida é uma atividade altamente socializadora num grupo, porque permite a vivência de um ritual de ofertas. Exercício de generosidade. Espaço onde cada um recebe e oferece ao outro seu gosto, seu cheiro, sua textura, seu sabor. Sem dúvidas, a partir desse momento me senti diante de velho/as amigo/as, me senti em casa, sem pressa para seguir nossa viagem.
Fizemos o caminho de volta com uma leveza impressionante, observando a paisagem como se fosse a primeira vez que a víssemos, todas as conversas eram voltadas ao que acabávamos de vivenciar, aos detalhes que observamos, admirados com a grande generosidade com que fomos recebidos, da forma tão plena e convincente com que fomos tratados.
Sei que quando agradecemos nominalmente sempre corremos o risco de omitir algum nome, porém faço questão de nomear cada uma das pessoas que tive contato nessa escola. Só temos flores em forma de agradecimentos à Secretária de Educação do Município: Tarciana Carvalho Costa Ramalho. Diretora da escola: Aparecida Araújo. Vice-diretora: Ana Cleide. O/as Professor/as e Funcionário/as: Ana Roselia Gomes, Aparecida Carvalho, Betânia, Cosma, Faberlandia, Graça, Gilberlândia, Jessica, Júnior, Eluziana, Maria de Fátima Pedroza, Maria de Fátima, Maria de Lourdes Araújo, Maria de Lourdes Pereira Procópio, Philippe e Antônio Alves, Maria José Borges, Maria José Ferreira, Maria de Lourdes Pereira, Neuza, Rita, Selma, Socorro Guimarães, Veroneuda e Emília.
Voltarei! Sem dúvidas, voltarei!
Socorro Lacerda de Lacerda
3 comentários On Olho D’água III
Viva querida amiga , suas histórias. Alimentam nossa alma de educadora .
Belo trabalho ,que Deus abençoe vocês grandemente .
Puxa! Consegui até imaginar como foi este dia só lendo seu relato!
Parabéns por tudo que deixou para esta escola e pelo que trouxe em seu coração.
Beijos!