Depois de percorrermos quarenta minutos em estrada de terra batida chegamos ao “Distrito do Socorro” popularmente conhecido como Barrocão. Ao avistarmos as casas com suas calçadas gastas, uma cena me chamou a atenção: vaqueiros vestidos com suas perneiras, guarda-peitos e chapéus de couro chato e redondo, de abas curtas e presos ao queixo pelo barbicacho. O couro gasto pelo tempo de uso e com suas marcas das várias empreitadas mata adentro em busca de bois desgarrados ou fujões, revelavam a valentia daqueles vaqueiros que, destemidos, seguiam uma rotina que parecia não mais existir. Mais uma vez começavam o seu dia bebendo um gole de cachaça enquanto falavam alto chamando os companheiros que se atrasavam saboreando o tira gosto. Não me contive e fui conversar com eles. Estavam de saída para trazer o gado ao curral, separar as novilhas das vacas adultas e dos touros reprodutores. Falavam animados e orgulhosos por nos darem informações que lhes pareciam preciosas. Nesses casos, uma foto é sempre bem-vinda.
Propositalmente, o carro foi avançando pela vila, lentamente. Ao chegarmos ao largo da igrejinha a impressão que tive foi de que, naquele lugar, o tempo havia parado. Crianças curiosas correndo ao encontro do carro para saber quem estava chegando. Outras, brincando em frente às suas casas, enquanto pais e vizinhos conversavam em suas cadeiras de balanço. Havia ainda, algumas crianças pequenas que brincavam nuas, puras, inocentes, sem a necessidade de cobrirem seus corpos que para muitos ainda não havia se “formado”. Homens carregavam suas enxadas nas costas, fumavam seus cigarros e soltavam suas fumaças amareladas em nuvens espessas produzidas por um tabaco artesal, certamente conseguido em feiras livres de alguma cidade próxima ou nas bodegas que ainda restavam. Mulheres acalentavam seus filhos, varriam suas calçadas, sacudiam panos no terreiro, estendiam suas roupas em varais improvisados entre uma árvore e outra. Chupetas ou “consolos” como costumam falar, ainda adornavam a boca de crianças relativamente grandes sem as incomodá-las. Como não incomodavam também expor seus sorrisos, pedir para ver algo que parecia inexistente naquele lugar, nos abraçar fortemente sem nunca ter nos visto. Aliás a demonstração de carinho o tempo todo foi explícita, descompromissada, verdadeira. Difícil imaginar tudo isso na cidade grande de onde viemos.
A calçada da escola estava apinhada de crianças e adultos ansiosos e curiosos. Já nos esperavam, o lanche estava sendo servido e a escola estava com suas portas abertas para nós e para quem mais quisesse chegar. Um retrato fiel do que seja acolhimento.
Fomos recebidos com sorrisos e abraços. Imediatamente um círculo se formou ao nosso redor revelando gestos de generosidade e um convite carinhoso para que conhecêssemos a escola. Fomos levados aos seus diversos espaços, enquanto nos mostravam seus trabalhos, falavam dos projetos que desenvolviam, escancaravam seus desejos de mostrar que levavam a sério o que faziam, que queriam aprender para serem ainda melhores do que eram. Sem biblioteca, organizavam cuidadosamente um acervo em estantes ao alcance de todos. Os cartazes que estampavam as paredes das salas eram coerentes com o que falavam, com o que trabalhavam, com o que objetivavam.
No pátio, as crianças se organizavam para uma apresentação e isso as deixavam agitadas, ansiosas, cuidadosas para fazerem o melhor, sempre o melhor. Enquanto se preparavam para suas apresentações, Lucio e eu íamos nos preparando para a nossa. Ao abrirmos nossas malas para organizarmos os materiais que usaríamos, a cada objeto tirado, revelado, mostrado desinteressadamente, crianças e adultos vinham até nós querendo olhar, manusear, conhecer, aprender como se faz como se usa. O ato de curiosear estava estampado no rosto de cada uma que se aproximava de nós. E nós, cercados de tantos olhares e atenção nos desdobrávamos para sermos ainda melhores, mais comprometidos com o que estávamos fazendo. Estávamos felizes por chamarmos a atenção de pessoas que tinha tanto a nos dar, acreditando que viveríamos momentos de trocas explícitas e generosas.
Apesar das crianças se agitarem por esperar pela organização do pátio, da apresentação dos seus colegas e pela nossa apresentação, não havia tumulto, tudo ali era leve, harmonioso e de uma beleza genuína, tanto em relação ao espaço que havia sido decorado de forma simples e cuidadosa, como no modo respeitoso com que nos procuravam para satisfazerem suas curiosidades ou nos dar algumas informações.
Nossos corações estavam transbordando de alegria, as pessoas nos faziam sentir em casa. Enquanto isso, nós elaborávamos cuidadosamente a melhor forma de fazer daquela contação de histórias a melhor que já fizemos em nossas vidas.
Socorro Lacerda de Lacerda
2 comentários On Olho D’água II
Lindo Socorro, fiquei pensando que dava um documentário isso tudo hein…
Parabéns de novo!
Oi Daniel, você precisa conhecer essas bandas. Está convidado!
Um abraço!