Essa história é a minha história

Ouvir as crianças contarem histórias é um dos momentos mais prazerosos que vivemos em nossas andanças. Quando uma criança se dispõe a ficar em frente aos seus colegas, rompendo a timidez e contando uma história em que vai colocando seus pontos de vista ou mesclando uma história ouvida por ela e sendo capaz de fazer sua própria versão, sentimos um enorme contentamento.

Um momento especial como este vivemos na Escola Municipal Santa Cruz, na cidade de Salto da Divisa.
Depois que contamos as histórias, sem que perguntássemos se alguém teria uma história para contar, Joélia levantou a mão ao mesmo tempo em que se levantou e falou que tinha, já se encaminhando para a colcha de retalhos. Sua segurança e determinação me encantaram e eu nada mais pude fazer senão ficar olhando onde tudo aquilo ia dar.

Ao sentar-se na colcha de retalhos, bem próximo de mim, começou a contar sua história, reconhecendo a plateia e se colocando diante dela. Mesmo quando visivelmente percebíamos que estava em dúvida sobre a continuidade da história, ela não se intimidava ou desviava o olhar. Ela tinha consciência do que estava fazendo. Queria realmente contar aquela história.

“Era uma vez uma princesinha, muito bonita e boazinha, que gostava de dormir, mas todos os dias precisava acordar cedo para ir à escola.

No outro dia, ela não levantou da cama para ir à escola e sua mãe foi até onde ela dormia e ficou chamando até ela levantar e sair.

No outro dia foi a mesma coisa: a mãe chamou, chamou, chamou e ela fingia que estava dormindo. Quando abriu os olhos, falou para a mãe dela que não queria ir à escola, porque era uma escola ruim, lá ela não aprendia nada e as outras crianças batiam nela.

Sua mãe ouviu tudo o que ela estava falando e resolveu ir conversar com a professora, depois mudou a princesinha para outra escola.

No outro dia, quando a mãe foi lhe chamar, ela já estava acordada querendo conhecer logo a escola nova. A mãe da princesinha ficou toda contente.

No outro dia ela também acordou e ficou esperando o ônibus para ir pra escola. Quando voltou para casa, estava toda animada. A mãe perguntou para ela o que estava acontecendo que ela estava tão alegre depois que mudou de escola.

A princesinha falou que era porque tinha adorado a escola nova, lá ninguém batia nela e a professora era muito legal.

Depois desse dia, a mãe da princesinha nem precisava ir chamar. Ela acordava sozinha, trocava de roupa, comia alguma coisa e ia para a escola feliz.

A princesinha ficou feliz para sempre.”

Ao terminar de contar a história, Joélia olhou para mim, balançou a cabeça levemente para um dos lados com seu olhar inquieto e me disse que tinha terminado a história.

Abracei-a carinhosamente e as crianças a aplaudiram, eu lhe falei que a história era muito bonita. Isso provocou nela um enorme sorriso. Porém, Joélia continuou me surpreendendo. Desta vez foi ela quem me deu um abraço demorado, depois que me soltou, olhou para mim, para os colegas e disse:

– Essa história é a minha história!

Estávamos vivendo, naquele momento, duas situações extremamente preciosas. Primeiro, Joélia tinha conseguido transformar a sua história em uma bonita história, cheia das expressões que ela ouvira de outras, era uma vez, feliz para sempre, uma princesa como personagem e, por ser princesa, bonita e boazinha etc.

Bastariam esses elementos como demonstração de que as histórias que ouvia na escola ou em casa estavam lhe permitindo organizar seus pensamentos em narrativas ordenadas a partir de seu cotidiano. Embora isso, que não é pouco, bastasse, Joélia dá a princesa, que agora sabemos que é ela, qualidades das mais valiosas: boazinha, bonita, responsável (acordava antes da mãe chamar). Mesmo inicialmente resistindo, ela consegue dialogar com a mãe, que leva a sério suas queixas e vai resolver o problema. Ao fazer isso, explicita de forma genial com sua autoestima elevadíssima, como ela se gosta e se respeita.

Joélia nos contou sua história nos ensinando que nossas histórias também são valorosas e, sendo cada um de nós o personagem principal, é preciso tirar dele o que ele tem de melhor pra transformar o mundo que nos rodeia.

Socorro Lacerda de Lacerda

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