Vir até o município de Conceição-PB, distante 2.542 km de nossa casa, significava, além do desejo de contar histórias em algumas de suas escolas da zona rural, também uma questão afetiva. Essa é a cidade onde Lucio (meu marido e também idealizador do projeto Conte lá que eu Conto cá) nasceu. Em nossas férias, ainda com os filhos bem pequenos, a cidade sempre esteve em nosso roteiro de viagens. Eram momentos preciosos de encontros com pessoas queridas, parentes próximos ou distantes, conversas descompromissadas com pessoas que íamos encontrando pela rua quando tentávamos aguçar a memória de cada uma delas em busca de lembranças do tempo dos nossos pais e dos nossos avós.
Por isso e pelo desejo de nos encontrarmos de uma forma “diferente” com a cidade e sua gente é que levar nosso projeto ao município de Conceição sempre foi dado como prioridade, como algo quase divino, indispensável. Nosso desejo latente de trazer para crianças da zona rural, momentos de alegria, contentamento e demonstração de que a leitura é o caminho para o real e o imaginário, nos leva inevitavelmente a querer compartilhar essa experiência em lugares que nos são caros.
Confesso, porém que não foi uma tarefa fácil entrar em contato com as escolas do município de Conceição-PB para agendarmos nossa visita. O caminho até a Secretaria de Educação foi tortuoso, cheio de desencontros de informações, telefonemas que não eram atendidos, e-mails que não eram respondidos, “nãos” ditos sem que nosso projeto fosse conhecido ou compreendido. Nossa insistência em continuar buscando contatos e desejando que nossa ida se concretizasse, não era apenas uma questão de benevolência pelo bom trabalho que acreditávamos estar fazendo, era também, e, muito especialmente, para tentarmos compreender como as informações chegavam até determinados órgãos e secretarias e quais eram as prioridades em relação à educação. Não estamos querendo dizer aqui que nosso projeto é indispensável, porém tentávamos compreender porque nossa comunicação não chegava até onde deveria. Quem filtra as informações? Quem julga se um projeto deve ou não deve ser aceito? Quem seleciona o que deve ou não ser prioritário?
Depois de muita teimosia, insistência, amigos tentando abrir canais de comunicação entre nós e a gestão municipal, contatos sendo buscados fora da secretaria de educação e da direção das escolas, enfim, uma série de acontecimentos e intermediações extremamente desnecessárias, caso houvesse um canal de comunicação aberto e respeitoso com quem pretende apresentar seus projetos, suas ideias, suas sugestões e mais que isso, sua intenção de colaborar para a qualidade da educação tantas vezes negligenciada por burocracias e falta de apoio efetivo. Nossos esforços e a ajuda de alguns amigos fizeram valer a pena e chegamos às escolas rurais do município com nossa mala carregada de histórias e nosso desejo cada vez mais latente de encontramos crianças que nos ouvissem e que fizessem dos livros que presentearíamos, objetos sedutores capazes de lhes imprimir as viagens necessárias para o mundo que desejam encontrar.
A primeira escola para onde fomos foi a EMEF Ana Figueiredo, na Comunidade do Cardoso. Um pequeno aglomerado de casas, com destaque para a casa grande e uma singela igrejinha recém pintada e muito bem cuidada. Impossível não direcionar o olhar para aquele lugar tão singular. Só as pessoas nos rodeando e alardeando nossa chegada nos fizeram perceber que já nos esperavam ansiosamente.
A escola é bem pequena, poucos alunos e muita curiosidade. Uma professora empenhada em fazê-los se comportarem bem. Por outro lado, eu tentando me aproximar de cada um deles e desejando que seu bom comportamento fosse não se calar diante das dúvidas, nem se retrair diante do desconhecido.
Enquanto organizávamos nossos materiais, dentro de uma sala de aula acompanhados pela professora, e curiosos na janela, entreguei propositalmente a um aluno uma máquina fotográfica e pedi que fotografasse o que mais gostava na escola. Minha intenção era descobrir e compreender o que, naquele lugar, era precioso para um aluno que talvez nunca tivesse sido estimulado a fazer uma observação cuidadosa daquele espaço, que deve representar conquistas significativas. O aluno saiu orgulhoso por portar o objeto desejado por outros colegas e foi pela escola seguido por outras crianças que tentavam influenciá-lo sobre o que deveria ou não fotografar. Os registros fotográficos foram extremamente significativos para me fazer compreender, o que, naquele espaço tão especial, chamava a atenção dos alunos e das alunas. Lousa com atividades escritas, um cartaz com envelopes colados e intitulado “Correio dos desejos”, uma estante amontoada de livros e objetos diversos, as merendeiras preparando o lanche, a placa com o nome da escola, as mesas do pátio ainda vazias, um filtro de barro e sua caneca de plástico à disposição de quem precisasse matar a sede, um relógio e um calendário confeccionados em cartolina, provavelmente pela professora.
Outros alunos e alunas também receberam a mesma tarefa: fotografar o que mais gostavam na escola. Coincidência ou não os registros foram muito parecidos. Objetos, cantinhos da escola e da sala de aula, pátio, atividades fixadas nas paredes. De gente em destaque, apenas as merendeiras que preparavam para o lanche um delicioso cachorro quente. Chamou-me a atenção o reduzido número de pessoas fotografadas, uma leitura conflitante de que escola se faz com gente nos espaços, nos caminhos, no entorno.
No decorrer da atividade, chamou-me a atenção o grande número de convidados para a audição das histórias. Nossa intenção sempre foi contar histórias para as crianças da forma mais simples, mais natural, deixando a liberdade fluir nas intervenções entre a contadora e os ouvintes e tentando não sair da rotina da escola. Aqui foi diferente, autoridades, convidados, mães, uma grande plateia formada mais por pessoas que não estão no cotidiano da escola do que pelos que fazem rotineiramente o trabalho com as crianças acontecerem. Isso me chamou a atenção. Diante da dificuldade que enfrentamos em relação à comunicação e ao agendamento para estarmos aqui, certamente queriam “desfazer” mal entendidos e mostrar que nos recebiam com satisfação. Que bom!
Não foram essas pessoas que me moveram a fazer a contação de histórias o melhor que pude, foi, na verdade, o pequeno número de crianças que, curiosas e atentas sentaram-se a minha frente para ouvir, falar, mostrar o que sabiam e revelar o quanto é preciso priorizar a leitura nos mais diversos momentos do cotidiano da escola. Como vimos em pesquisas anteriores, comprovada em nossa experiência de “caminhante”, 95% das escolas rurais não tem biblioteca ou sala de leitura, porém 75% delas conta com um pequeno acervo conseguido ou através de programas do governo, ou de doações. Isso significa que as professoras e professores não tem a oportunidade de escolher os títulos que a escola receberá. O uso que se faz desses livros é o grande diferencial para o trabalho com leitura. Cantinhos de Leitura, livros expostos em varais pendurados na sala de aula, banca de livros no pátio, panôs com bolsos transparentes para expor os livros, cortina de livros, livros dispostos em tapetes etc. Estas foram algumas das formas em que vimos as professoras e professores disporem do acervo para que alunos e alunas tivessem contato com os livros sem que esse contato se transformasse em um evento cada vez que um livro fosse usado. A leitura cotidiana, a contação de histórias, o livro sendo manuseado, olhado, lido, compartilhado, experienciado em suas várias formas de ler a palavra e a imagem é o que deve ser rotina. Livros encaixados cuidadosamente para que as crianças não rasguem, não sujem, não desapareçam com eles, não se prestam ao seu papel fundamental que é o de formar leitores e fazer deles pessoas que se reconheçam no que veem e no que leem, além do que apenas as palavras ditas ou contadas os fazem imaginar.
As brincadeiras no final da atividade foram muito prazerosas. Prazeroso também foi conversar com as pessoas que estavam presentes e que, para nossa alegria, procuraram conhecer um pouco mais sobre o projeto Conte lá que eu Canto cá, conversar com as crianças e falar sobre os livros, os brinquedos, as brincadeiras e os objetos dispostos em nossa colcha de retalhos.
Finalmente, fui até a igrejinha e, na lateral de uma casa simples, me aproximei de um jovem senhor que debulhava milho e jogava para as galinhas que se aproximavam fazendo um barulho com sons agudos e bater de asas frenético. O sorriso largo e as palavras de boas-vindas me deixaram à vontade para sentar ao seu lado e começar uma conversa a respeito das chuvas, das pequenas plantações, do milho colhido para alimentar os animais e garantir pamonhas e canjicas para as festas juninas. Fui embora daquele lugar com uma vontade danada de continuar aquela conversa. Enquanto as galinhas ciscavam para bicar a maior quantidade de milho, alunos e alunas se preparavam para voltarem para suas casas em caminhonetes com coberturas improvisadas. Enquanto eu, olhando o entorno e me despedindo daquele jovem senhor, pensava silenciosamente: a escola está aqui nesse terreiro e é preciso ensinar a ler cada uma dessas pessoas, desses animais, dessa terra batida e curtida pelo sol, dessas cercas de varas secas e levemente curvadas, dessa casa grande que já deve ter abrigado tantos moradores que saíram em busca de vidas melhores, do som dos bois e seus chocalhos que eu ouvia ao longe, das pedras que rolavam aos pés descompassados dos andantes e a tantas outras expressões que se apresentavam pedindo para serem lidas, vivenciadas, tocadas, experimentadas, levadas consigo na memória de cada um que por ali passava ou vivia, para se transformar em vida e em desejo de se viver de forma digna.
A escola estava bem diante dos meus olhos sem que ainda tivesse sido descoberta. Paulo Freire deve ter passado por ali quando pensou na importância da leitura de mundo. Uma leitura que não está em caixas nem em livros, mas que deve ser igualmente estimulada.
Nesse dia, li e reli aquele espaço como quem lê a própria vida desencadeada pelo olhar do estrangeiro, como quem chega em um lugar desconhecido e descobre que tudo aquilo lhe é tão familiar.
Em mim a alegria se fez presente, pois, naquele dia, minha leitura havia extrapolado minha contação de histórias.
Socorro Lacerda de Lacerda
7 comentários On EMEF Ana Figueiredo – Comunidade do Cardoso. Conceição-PB
Trabalho maravilhoso!!!
Trabalho maravilhoso!!! TE admiro muito. Conte histórias por todo o Brasil. Te amo.
Obrigada, Silvia! Você e seu talento são inspirações para mim.
Parabéns, pelo brilhante e necessário trabalho envolvendo criança e leitura da literatura.
Você é especialmente criativa e ousada. Adoro também esse universo literário e ao mesmo tempo pedagógico. Façamos reverberar ações tão importantes e intensamente maravilhosas como a sua.
Por isso, “conte lá que eu conto cá”
Beijos!
Obrigada, Sineide Lacerda. Seu trabalho muito me inspira.
Saber que a Criança é a principal razão do seu Projeto, Você precisou tirar vários adultos do seu caminho… lamentável. Parabéns pela persistência e pelo final feliz. Para você e o Lucio minha eterna admiração. Beijos.
Obrigada, Sônia. Você é minha grande incentivadora. Um abraço!