EM Miguel Arcanjo Pereira – Sítio Brabo – Jardim do Seridó/RN

Entre a BR 427 e o sítio Brabo, precisei descer do carro para abrir a porteira que nos daria acesso à estrada de terra que nos levaria à EM Miguel Arcanjo Pereira. A estrada era boa e não tivemos nenhum problema de localização. Foi uma enorme surpresa e alegria chegar aquela escola que tinha acabado de passar por uma reforma e estava linda, limpa, organizada, crianças animadas e sorridentes e professoras comprometidas e engajadas. Uma energia vibrante que logo contaminou ao Lucio e a mim.

Todos já nos esperavam e prontamente nos ajudaram a pegar os materiais que estavam no carro e colocá-los na quadra coberta anexa à escola onde desenvolveríamos nossas atividades. Um espaço amplo, iluminado e extremamente limpo. Entre a organização do espaço e a escolha do material para as histórias que seriam contadas, as conversas aconteciam animadamente entre todos: perguntas sucessivas, repostas entrecortadas, depoimentos sobre o funcionamento da escola, empolgação das professoras por estarmos ali, ansiedade por mostrarem os trabalhos que faziam, os projetos que realizavam, os materiais que confeccionavam. A organização das salas de aulas e o cantinho da leitura eram primorosos.

A contação de histórias foi um momento iluminado: palavras, expressões, gestos, caras e bocas aconteceram de forma extremamente espontânea, com uma leveza incrível. Não se contentaram em ficar sentados, naturalmente foram se deitando no chão e aconchegando a cabeça entre as mãos. Um ou outro começou timidamente e logo a maioria deles já estava deitada: atentos, respeitosos, admirados com o desfecho de cada história. Uma belezura!Entre uma história e outra, o assunto suscitado pelo texto era prolongado por conversas que extrapolavam para opiniões, comentários e expressões de espanto pelo que tinham acabado de ouvir e de participar. Em outros momentos, o silêncio reinava como se não compreendessem que a história havia acabado ou como quem tinha se introjetado de tal forma na história que simplesmente não queria sair dela. Um bom exemplo disso foi quando terminei de contar a história “A colcha de retalhos”, de Nye Ribeiro e Conceil Correa da Silva, que termina com um diálogo emocionante entre Felipe e sua avó:

“- Vovó, vem aqui pertinho. Agora, me dá um abraço bem gostoso!
– Aconteceu alguma coisa, Felipe?
– Sabe, vovó… – cochichou Felipe, bem baixinho, no seu ouvido… – preciso te contar um segredo: eu acho que já entendi… agora eu já sei o que é saudade!”

O silêncio continuou por poucos segundo que pareceram horas. Algo mágico hávia acontecido ali, até eu mesma, olhando para aqueles rostos quietos e seus olhos mirando o nada, demorei um pouco para fazer a pergunta que os trazia de volta aquele espaço em que, na maioria do tempo, ecoava as falas de todos:

– E vocês, já sentiram saudades?

Como que saindo de um mergulho, eles foram falando de suas saudades e de suas vontades. Pessoas, coisas e lugares foram lembrados. Desejos de reencontros com familiares e amigos distantes foram colocados.

Quando propus que algum aluno ou aluna contasse uma história, não houve timidez nem empurra-empurra. Duas alunas se dispuseram a participar. Uma delas leu a história: “O coelhinho que não queria ser de páscoa”, de Ruth Rocha. Outra aluna contou a história de “Chapeuzinho Vermelho” e aproveitou para usar uma máscara da personagem que estava disponível entre os materiais que eu levara. Leitura fluente, desenvoltura no contar, tranquilidade para se apresentarem diante dos colegas e olhos atentos e marejados da professora que via sua aluna desenvolta e leitora, apesar de ser trabalhada em uma sala multisseriada. Uma vitória!

A professora Valdenira deu um importante depoimento sobre seu nascimento e crescimento na mesma comunidade onde vive até hoje, sua luta pela educação, especialmente pela escola rural e seus desafios em trabalhar com turmas multisseriadas. Quando ela começou a trabalhar no município havia 28 escolas rurais, hoje funcionam apenas duas. Para conseguir manter a escola no Sítio Brabo foi preciso muita luta. “Foi uma luta muito grande manter essa escola aberta, porque a tendência é fechar as escolas rurais, só que aqui a gente fez uma política junto com os pais e toda a comunidade, inclusive as comunidades vizinhas, e concentramos aqui os alunos dessa região. Hoje temos mais de trinta alunos matriculados em nossa escola.” Esses trinta alunos estão divididos em duas salas multisseriadas.

Não foi emocionante apenas ouvir sua história de vida, foi bonito ver como, após vinte e oito anos de trabalho, ela ainda continua esperançosa e disposta, acreditando em sua luta e em seu trabalho. Não menos curiosa e animada estava a professora Alexsandra, orgulhosa dos seus alunos, empolgada com as atividades que faziam e com a organização do espaço da sala de aula onde trabalhava.

Terminar de contar as histórias não foi o fim das conversas e brincadeiras. Continuamos conversando e brincando com os brinquedos disponíveis e com a confecção de um pião a partir de uma página de revista, um palito e cola. Foi um momento de muita expectativa, pois não falei o que faríamos com aquele material. Ao perceberem que era um pião, o desejo de todos era de que cada um deles tivessem a oportunidade de fazê-lo girar. Cada giro conseguido era motivo de vibração, alegria e altas gargalhadas que chamavam a atenção de quem ainda não estava ao nosso redor. Confeccionar um pião com materiais tão simples motivou alunos e alunas a falarem que também confeccionavam brinquedos com materiais que tinham em seu entorno. Um exemplo foi a confecção também de um pião com o fruto da favela (árvore que cresce na região). Esse foi um bom motivo para saírem da escola e irem procurar a tal árvore para me mostrarem como fazem o brinquedo. Saíram eufóricos, queriam mostrar o que faziam, o que sabiam, como brincavam, porém não conseguiram encontrar a árvore próximo à escola. Alguns sabiam onde tinha, mas para chegar até ela, era preciso entrar um pouco mais na mata e achamos melhor parar a busca por ali. Liberdade foi o nome que dei aquele momento. A escola não se limitava às salas de aula ou aos muros que a cercavam, extrapolava tudo isso e se expandia pro terreiro da escola que se avizinhava ao terreiro das casas dos alunos e alunas, às árvores que as rodeavam, ao passo firme que os impulsionavam a caminharem, aos pássaros que eram reconhecidos por seus nomes e seus cantos. Não encontraram a “favela” para me ensinarem a fazer o pião, entretanto, me ensinaram e me mostraram a beleza de uma escola viva, inteira, multidisciplinar, respeitosa com o lugar onde está inserida, com as pessoas que a frequentam, com o desejo de que a aprendizagem se dê da forma mais intensa a partir do que tem e do uso que fazem disso. A alegria da convivência e de receber as “visitas” como se fossem velhos conhecidos, ficando tão à vontade diante deles que se permitem se esparramar no chão para ouvir as histórias e tirar seus chinelos para correr em busca do valioso fruto que lhes permitirá ensinar algo, com o único objetivo de valorizar as trocas de experiências e aprendizagens.

O mais emocionante foi, depois de alguns dias, receber da professora Valdirene, um vídeo com as crianças brincando animadamente com piões que eu havia lhes ensinado a fazer e agora haviam confeccionado com a ajuda de uma colega. Junto ao vídeo, a legenda: “Os peões confeccionados por Angélica. Angélica ama tudo. É a nossa aluna mais carente financeiramente, mas é também a mais feliz, gosta muito de ajudar a todos.” O vídeo tem a duração de apenas 26 segundos. O tempo suficiente para observar que em cada tentativa de fazer o pião dar a volta em torno de si mesmo, as crianças falavam animadas sobre qual rodava melhor, qual o que ainda não conseguia. O tempo suficiente para sentir e me reconhecer nas imagens, pois de forma implícita elas me mostravam que eu estava presente ali. Que a finitude de cada volta representava o desejo de infinitude de um momento tão prazeroso de descobertas e demonstração de carinho por si mesma e pelos outros.

Vibrei ao observar crianças que havia conhecido e com quem tinha vivido momentos tão especiais brincando com o pião que eu havia lhes ensinado a fazer e que agora eles próprios construíam. A sensação que tive era de que eles haviam ficado com um pedacinho de mim e gostavam disso, enquanto eu me sentia impregnada deles e estava adorando revê-los.

Socorro Lacerda de Lacerda

13 comentários On EM Miguel Arcanjo Pereira – Sítio Brabo – Jardim do Seridó/RN

  • renata estrela do o lacerda torhacs

    Tia, que fantástica sua experiência!!! Ao ler seu relato, pude ouvir sua voz, lembrar das suas expressões, e o seu modo de falar, e o mais gratificante; sentir a mistura de sentimentos adquiridos durante a realização do seu projeto. !!! Que momento enriquecedor !!! Sou grata por te-la como minha tia, e por me permitir fazer parte da sua vida e histórias. Que o Pai Celeste lhe abençoe nessa nova aventura. Guardarei com carinho seus textos, para que a minha posteridade veja o grandioso legado deixado por você!!! Te amo !!!

  • muito gratificante compartilhar com os carentes e receber de volta tanto calor

  • Só, que coisa linda, estou encantada com o seu projeto…fico imaginando o deslumbramento dessas crianças vivenciando esse momento mágico contigo…Que Deus continue te abençoando nessa jornada de encantamento e de sonhos…bjss

  • Eulalia M Lacerda Fragoso

    Parabéns Socorro! Que experiência maravilhosa!

  • Pura poesia e poesia pura, os momentos vividos por vocês. Obrigada por compartilhar!

  • Em nome de todos que fazem a Unidade Escolar Miguel Arcanjo Pereira agradecemos imensamente pela oportunidade que nos deste de fazer parte desse projeto enriquecedor. Momentos especiais que vivenciamos.

  • Oi Socorro Lacerda quem fala é clara a q contou o coelhinho que não era de Páscoa
    Ficou lindo o texto ❤❤❤

    • Puxa, Clara! que bom que você gostou do texto, eu fiquei muito feliz em conhecer todos aí e assim que tiver uma oportunidade quero voltar. Um grande abraço para você e seus amigos.

  • Ana Lucia H.M.C. de Almeida

    Que projeto de vida maravilhoso você e seu marido traçaram!! Não estão só contando histórias, estão fazendo história! Parabéns!!! Bjs

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