Nós não estamos acostumados com trabalho voluntário

Essa foi a frase que ouvi da assessora da Secretaria de Educação do Município de Borda da Mata – MG quando lhes falávamos das dificuldades que tivemos para agendarmos as contações de histórias na maioria dos municípios dos quais mantivemos contato.

Segundo ela, os municípios estão “quebrados”, as dificuldades para manterem seus compromissos são imensas e, geralmente, quando chega alguma proposta de trabalho, das mais simples as mais complexas, sempre tem algum interesse financeiro, ainda mais se tratando do serviço público. Certamente, essa recusa em aceitar o projeto de vocês e até mesmo nem chegarem a responder os email é o medo de que ao chegar ao município precisem contribuir com alguma ajuda de custo. Trabalho 100% voluntário? Não estamos acostumados com isso!

Ignorando esse medo de que nosso trabalho viesse a ter algum custo, a Secretária de Educação de Borda da Mata – MG, aceitou de prontidão que levássemos nosso projeto as escolas municipais daquele município. A gentileza com que fomos tratados desde o contato via email, foi como um alento para nós depois de tantos nãos e ausências de respostas para a maioria dos municípios para os quais enviamos nossa proposta.

Durante nosso contato ficamos sabendo que no município de Borda da Mata não havia escolas rurais, porém a insistência para que levássemos o projeto até à cidade nos fez abrir uma exceção e fizemos as contações de histórias em escolas urbanas. Foram seis contações carregadas de uma enorme alegria, receptividade, respeito pelo nosso trabalho e a felicidade de encontrarmos também belos contadores de histórias, autores de suas próprias narrativas.
Um belo exemplo disso é o aluno Otávio dos Reis Bernardo que estuda na EM Antônio Marques da Silva.

Parabéns, Otávio!

Diamante: Uma Joia Rara II

Inevitavelmente, criamos uma expectativa em relação a nossa chegada à próxima escola e se lá o aviso sobre nossa ida havia chegado. Uma preocupação que não deveria existir devido à seriedade com a qual organizamos nosso cronograma após contato direto com secretários de cada um dos municípios para o qual nos dispusemos a ir.
Para chegarmos onde trabalharíamos no período da tarde, além de uma estrada bastante desgastada, a distância era enorme. Precisamos parar muitas vezes pelo caminho para perguntar às raras pessoas que encontrávamos, se estávamos na direção certa. Nem a distância, muito menos a estrada poeirenta, nos fizeram desistir de seguirmos em frente, embora a experiência da escola anterior nos fizesse pensar se passaríamos pela mesma situação da falta de informação entre os órgãos.

Finalmente chegamos à Barra de Oitís e percebemos logo de início que não se tratava de uma escola rural qualquer. Barra de Oitís era um distrito de Diamante. Nos chamou a atenção o grande número de pessoas que circulavam desde que avistamos o distrito, logo percebemos que se tratava da saída dos alunos devido ao final no turno de aulas. Embora tivéssemos agendado nosso trabalho para às 14h, resolvemos chegar bem mais cedo. Gostávamos de conhecer o entorno da escola e conversar com as pessoas que encontrávamos pelo caminho. Isso já nos rendia bons papos e ótimas histórias.

Conhecer gente e suas histórias de vida, independentemente de registrá-las ou não, tinha para nós uma grande importância. Era conhecendo gente e, mesmo por pouco tempo, nos relacionando com elas que enriquecíamos nossa própria história de vida, pois inevitavelmente carregaríamos conosco parte de suas experiências e dos seus sonhos. Nosso projeto não era apenas contar histórias para as crianças, era também conhecer um pouco dos lugares, das pessoas e da cultura de um povo que mesmo compartilhando a mesma região, tinha suas semelhanças e diferenças.

Gostamos de chegar e ver tanta gente. Gente de diferentes idades, conversando animadamente, exibindo seus materiais enquanto se apressavam para não perder o ônibus escolar que os levaria até os sítios vizinhos onde moravam.

Foi fácil encontrar a EMPG José Antônio Barros. Era uma escola relativamente grande e se localizava em destaque na primeira rua por onde chegamos. Entramos e percebemos que as pessoas estavam de saída. Alguns professores que encontramos nos levaram até a sala da diretora, que também estava se organizando para pegar o ônibus escolar. Junto a ela estava o coordenador pedagógico, que embora apressado, também nos recebeu muito bem. Porém, para nossa surpresa, também não sabiam que havia um agendamento para nossa apresentação. Ficaram tão surpresos quanto nós e lamentaram profundamente não contarem com nossa apresentação, pois para eles representava uma perda de oportunidade significativa diante da carência por atividades vindas do exterior da escola.

Nossa decepção foi ainda maior quando soubemos que naquela escola não funcionava o segundo turno. Isto é, havíamos feito um agendamento junto à Secretaria de Educação do Município para irmos a uma escola no período da tarde, quando na verdade essa escola não funciona nesse período. Isso mesmo!
Diante de tamanho desencontro e desapontamento de nossa parte, ficamos extremamente desanimados para continuarmos nossas visitas nas escolas do município que havíamos agendado para o dia seguinte. Entramos em contato com a Secretaria de Educação, que nos pediu desculpas e reconheceu que houve um equívoco pelo não funcionamento da escola no período indicado.

Nosso desânimo não nos deixou trabalharmos mais naquele município e cancelamos nossa visita para as demais escolas, que seriam: EM João Galdino – Sítio Engenho Velho, EM João Olegário – Sítio Porções e Assentamento Lampião, no sítio Saco Velho. Lamentamos por precisarmos fazer isso, como lamentamos também terminar nossa primeira etapa de forma tão diferente de como começamos.

Vivemos nessa primeira etapa experiências que nos enriqueceram e nos animaram profundamente, que nos surpreenderam positivamente e nos decepcionaram, escolas funcionando de forma extremamente satisfatórias enquanto outras se apresentavam descuidadas e sem condições adequadas para seu funcionamento. Porém, em nenhuma delas encontramos professores ou professoras que não estavam imbuídas e conscientes do seu papel de educadoras, que não tivessem a clareza de que a educação passa por momentos críticos de desvalorização e desrespeito, que em sua maioria os estudantes não são levados a sério. Vimos os ônibus escolares, direito de alunos e alunas, se locomoverem entre suas casas e as escolas onde estudam, serem substituídos por velhas caminhonetes com cobertura improvisada por desgastadas lonas e bancos desconfortáveis de madeira para as crianças sentarem e enfrentarem as péssimas condições de descuidadas estradas de terra.

Escolas antigas sendo derrubada para a construção de novas, reformas bem-sucedidas, outras escolas necessitando urgentemente de reformas, banheiros ainda sendo usados fora do prédio, sujeitando as crianças às intempéries, expondo-as às doenças mais banais por falta de saneamento básico e cuidados mínimos com higiene. Desrespeito, descaso, descontentamento.

Não ficamos só nisso. Para nossa alegria encontramos também, secretários de educação dentro da escola separando material junto com professores/as e alunos/as, se fazendo presentes no cotidiano da escola, querendo saber de suas necessidades. Professoras e professores extremamente compromissados, sérios, guerreiros, capazes de se emocionar com as aprendizagens e as descobertas dos seus alunos e alunas. Gente que sabe que é o seu trabalho que pode mudar a realidade de crianças e jovens que muitas vezes não se dão conta de que existe vida além daqueles recantos quase sempre esquecidos pelo poder público.

As descobertas foram muitas e valiosas. Quando me perguntam como foi viajar tanto para contar histórias em lugares tão isolados e distantes, não tenho outra resposta senão a de que vivi momentos de extrema felicidade.
E é por querer continuar sendo feliz que já estamos nos preparando para a segunda etapa do projeto “Conte lá que eu conto cá”. Seguiremos para o sul de Minas Gerais e nos preparar para mais uma etapa já nos enche de alegria.

Até breve!

Socorro Lacerda de Lacerda

Diamante: Uma Joia Rara I

A última cidade que planejamos visitar com o projeto “Conte lá que eu conto cá”, em nossa primeira etapa, foi a cidade de Diamante, localizada no sertão da Paraíba. Nossa proposta, enviada por e-mail, para a Secretaria de Educação foi recebida com extrema gentileza. Isso nos deixou muito felizes, principalmente pelo apoio que recebemos e o pedido para contarmos nossas histórias em mais escolas rurais do que costumamos contar em cada município.
Como chegamos até aqui cheios de histórias para contar e de animação e contentamento por termos vivido momentos de imensa alegria em experiências realmente transformadoras e enriquecedoras, embora cansados pela jornada já percorrida, estávamos muito animados e curiosos.
Para chegarmos até as EM Pedro Fortunato (Mata de Oitís) e EMPG José Antônio Barros (Barra de Oitís), dormimos na casa de amigos em um sítio no município de Boa Ventura que fica a poucos quilômetros da cidade de Diamante. Com acolhida tão calorosa e um farto café da manhã, saímos bastante cedo para garantirmos que não nos atrasaríamos, pois, na verdade, não sabíamos o tempo que levaríamos para chegarmos à primeira escola localizada no sítio Mata de Oitís.
Fizemos bem em sair logo cedo, o sítio ficava bem mais distante do que pensávamos e a estrada de terra não ajudou muito. A Escola Pedro Fortunato não está isolada como outras que visitamos, fica em um pequeno amontoado de casas com uma igrejinha ao fundo. O lugar é muito simples, tão simples quanto a escola que avistamos em primeiro plano. Está cercada por um retorcido e perigoso arame farpado e com piso de cimento queimado muito desgastado, revelando que a muito tempo o prédio não passava por uma reforma. O banheiro para uso de alunos e professores fica fora do prédio e em condições bastante inadequadas.
Logo nos convidaram para entrarmos e, apesar da carência do espaço, ficamos realmente felizes com a recepção e o que encontramos ao entrarmos.
No canto de uma das salas, organizado cuidadosamente, um “cantinho de leitura” bastante charmoso e convidativo. Esse cantinho estava identificado com letras grandes e coloridas, coladas na parede, alguns livros em cima de uma pequena mesa e um pequeno tapete com almofadas no chão. O carinho e cuidado com que aquele cantinho fora preparado era visível. Apesar do material demonstrar ter sido bastante usado, tudo estava muito limpo e organizado. A professora nos mostrava com o olho brilhando, orgulhosa de fazer dos momentos de leitura com seus alunos, momentos de festa e alegria.
Do outro lado da sala, organizado de forma igualmente cuidadosa, ficava o “Cantinho da Matemática”. Seus poucos e simples materiais davam uma dimensão do quanto as professoras se empenhavam em tornar acessível os parcos materiais de que dispunham, era visível o carinho com que faziam tudo aquilo. As crianças em volta, acompanhando nossa visita, se mostravam igualmente animadas e dando detalhes do que faziam e como utilizavam cada um daqueles “cantinhos”.
Entretanto, esses foram momentos posteriores a nossa chegada e apresentação. Para surpresa nossa, descobrimos que ali ninguém sabia de nossa ida a escola naquele dia. Isso mesmo! Embora nosso agendamento tenha sido feito junto à Secretaria de Educação do Município, com bastante antecedência e confirmada nossa ida ao sairmos de São Paulo, as pessoas que trabalham na escola não foram avisadas. Nosso desapontamento só não foi maior por termos sido recebidos de forma tão calorosa por professoras dispostas, animadas, acreditando que o que estávamos propondo era importante para todos que estavam ali. Segundo uma das professoras, erámos bem-vindos, principalmente por não criarmos a oportunidades de vivenciarem, na escola, momentos lúdicos e divertidos além dos que elas mesmas se propõem a fazer. “Gente de fora” para contar e ouvir histórias? Isso nunca havia acontecido por aqui.
A contação de histórias não ficou menos animada por conta desse contratempo, pelo contrário, reconhecendo que ali estavam crianças curiosas e inteligentes, fiz o melhor que pude e ainda tivemos tempo para relembrar, com um dos alunos, a brincadeira do “passa anel” que tanto brinquei em minha infância. Percebi, com bastante contentamento, que as crianças daquele lugar ainda não foram totalmente “invadidas” por brinquedos eletrônicos e individuais e encontravam tempo e disposição para brincadeiras coletivas, com elementos simples que encontravam em seu entorno.
Fiquei grata pela recepção das professoras e dos alunos, pelo café com queijo improvisado depois da contação de histórias (como não sabiam que íamos, foram correndo na casa de uma delas pegar algo para nos oferecer) e por perceber que a carência de material e de cuidado de órgãos exteriores à escola e seus funcionários não havia contaminado quem trabalhava ali. Pelo contrário, todo o cuidado e zelo que encontrei naquele espaço era visivelmente resultado das pessoas que cotidianamente se empenhavam para realizarem um trabalho sério com o compromisso de ensinar e educar da forma mais responsável possível.
Essa experiência nos fez refletir acerca do que poderíamos encontrar nas próximas escolas do mesmo município. Apesar da recepção calorosa de quem encontramos na Escola Pedro Fortunato, saímos um pouco decepcionados e reflexivos.

Escola Municipal de Ensino Fundamental Arlindo Batista Palitot

Montevidéo é o nome de um distrito da cidade de Conceição-PB. Sempre ouvi falar nesse lugar e, talvez pelo nome ser também de uma cidade de um país vizinho ao Brasil, me causou fascínio e vontade de conhecer. Antes do nosso projeto não tive a oportunidade e agora, após a dificuldade de agendamento e a superação dos percalços, fiquei muito animada para chegar até lá. Valeu a pena!

Fomos a tarde e estávamos sendo aguardados. Fomos recebidos com alegria e logo me senti a vontade, não parecia que pessoas, antes tão distantes e inacessíveis, fossem agora tão amigáveis. Uma boa surpresa e um desprendimento meu que já havia passado tudo “a limpo” e estava pronta para trabalhar, ouvir, contar, ler, observar e inventar histórias. Eu estava me sentindo leve, disposta e feliz.

Antes de começarmos nossa contação de histórias percebemos que as crianças já nos esperavam organizadas na sala de aula, prontas para nos receber. As cadeiras e carteiras estavam recuadas de modo a deixar um grande espaço ao lado da parede onde fica a lousa. Espaço ideal para nos organizarmos e espalharmos nossos “cacarecos”. Lucio se antecipou nessa organização com a ajuda de algumas crianças, enquanto eu ia conversando com os adultos que estavam no pátio da escola e queriam me perguntar sobre o projeto, me falar de como estavam contentes por estarmos ali, me mostrar espaços da escola e nos falar da reforma pela qual a escola havia passado recentemente.

A EMEIF Arlindo Batista Palitot está localizada a trinta quilômetros da sede do município de Conceição – PB. No mesmo lugar onde hoje ela está situada havia uma escola que funcionava em um “pequeno prédio construído no ano de 1951, em um terreno doado por Arlindo Batista Palitot e Maria Ferreira Ramalho Palitot, descendentes dos fundadores do distrito. Inicialmente a escola chamava-se Escola de Bom Jesus. Em 1985 a escola passa-se a chamar Escola Arlindo Batista Palitot em homenagem ao doador do terreno. Pelas condições precárias que estava o prédio, a administração municipal, no ano de 2017 resolveu investir em um novo prédio que desse aos alunos e funcionários mais conforto e condições adequadas de permanência em suas dependências no decorrer do período em que o espaço é utilizado. Entretanto, não houve uma preocupação em reformar o antigo prédio para garantir que a história de sua construção e as pessoas envolvidas fossem valorizadas como pioneiras da educação em um espaço e tempo onde a carência de escolas era muito maior que hoje em dia. Certamente há motivos para a não reforma que eu, alheia as questões burocráticas, não compreenda, entretanto como amante de uma boa história real ou fictícia e da própria história construída por homens e mulheres ao longo do tempo, penso ser extremamente importante a preservação da história material e imaterial de cada canto onde houve o empenho de pessoas que em seu tempo deixaram marcas como resultados de suas lutas e resistências. Sempre me questiono: – Para modernizar ou adequar algo ao presente é preciso realmente destruir ou abrir mão do passado?

Questões históricas a parte, nossa chegada a escola foi de um acolhimento singular. Foram muitas as manifestações de carinho. E o mal estar dos diálogos equivocados no decorrer do processo de agendamento para virmos a escola, já havia se dissipado.

Enquanto conversava com as pessoas, ainda no pátio da escola, uma tímida e simpática senhora se aproximou de mim e falou com voz meiga e tranquila que depois que terminássemos de contar as histórias precisava falar comigo. A correria para não deixar as crianças esperarem mais do que o necessário me fez esquecer momentaneamente aquela senhora e seu jeito manso de dizer que “precisava falar comigo.”

No decorrer do nosso trabalho, em uma sala iluminada por janelas de vidros, porta aberta e um piso claro e limpo, as histórias foram fluindo com muita naturalidade e as crianças foram se aproximando do tapete, onde eu estava, até chegar um momento em que eles não estavam mais a minha frente e sim ao meu redor. A partir desse momento as histórias iam sendo contadas, enquanto eu passeava pela sala não mais para reconhecer aquele espaço, mas para circular nele como se fosse a sala da minha casa ou aquele quintal de frequentes lembranças. Dizer que estava me sentindo em casa, não era modo de dizer, era a pura sensação de movimentar-me, olhar o outro, se deixar ser olhado, tocado, abraçado como em um lugar onde só pessoas próximas ou familiares tem essa intimidade ou necessidade de demonstrar carinho e desejar que esse carinho seja reconhecido.

Autoridades ou não, funcionários ou não, os adultos se misturaram as crianças para também ouvir as histórias e manifestarem suas sensações e emoções que me permitiam numa troca simbiótica do que eu também sentia. Essa troca só é possível quando a harmonia se estabelece e a liberdade se instala. Liberdade de poder chegar, falar e ser compreendida. De superar mal entendidos gerados fora do espaço onde se está e fazer essa liberdade chegar até onde esses mal entendidos possam ser desfeitos para se refazerem diferente do que poderia ter sido. Essa fala, talvez contraditória ao início do texto explica-se pelo fato da dificuldade de comunicação que tivemos para chegar até o município de Conceição/Pb. Porém, em nenhum momento permiti que questões de “bastidores” interferissem em meu trabalho e em meu modo de ver alunos e alunas como primordial, não apenas para o funcionamento das escolas, mas muito especialmente como fundamental para o estabelecimento de relações interpessoais respeitosas e verdadeiras. O aluno merece que, diante dele e para ele, estejamos inteiras, conscientes do nosso trabalho como forma de mostrar possibilidades para que possam extrapolar seus limites físicos, mentais e territoriais em busca dos seus sonhos e de uma vida melhor. Apenas a escola não basta para essa descoberta do que somos e do que desejamos ser, mas é ela primordialmente, pela sua função social e formação intelectual que deve abrir as portas para que seus frequentadores consigam ter um melhor entendimento do mundo onde vivem e da necessidade de se manterem firmes em busca de uma sociedade mais justa. Essa minha forma de pensar também foi encontrada em educadores e educadoras com os quais me deparei ao longo dessa viagem. Isso também muito me alegrou.

E aquela senhora que queria falar comigo depois que eu terminasse de contar as histórias? Agora havia lembrado dela e novamente fui invadida pela curiosidade de saber quem era e o que tinha para me dizer.
Não demorou muito e ela apareceu, tranquila como fora anteriormente, com um pacote entre as mãos e uma fala emocionada:

– Sou tia de Fátima Ramalho. Você lembra dela?

Embora não a conhecesse pessoalmente Fátima Ramalho, havíamos desenvolvido uma amizade virtual que muito me fortaleceu no decorrer e desenvolvimento do projeto. Seus comentários no blog contelaqueeucontoca.com.br, sempre foram extremamente simpáticos e animadores, me motivaram a continuar, me fizeram querer ser melhor.

A senhora continuou:

– Ela pediu para lhe falar que admira muito seu trabalho e que infelizmente não pode estar aqui para lhe ouvir e lhe cumprimentar. Por isso, ela me pediu para lhe entregar “isso”.
Segurei aquele pacote bastante emocionada pelas palavras que acabara de ouvir e pensei; Puxa vida, essa tal de internet é mesmo capaz de provocar emoção, estreitar laços, materializar respeito e admiração independente do lugar e da forma como isso se dê.

Não me contive e abri o presente ali mesmo. Era dois queijos coalho fresquinhos e convidativos para um belo lanche. Quanta generosidade, quanta delicadeza. Presentear alimento é um gesto extremamente significativo da importância do que se dá e para quem se dá. Na Paraíba e certamente em muitas outras partes do nordeste, quando recebemos alguém em nossa casa a primeira demonstração de uma boa recepção é oferecendo-lhe um bom e farto alimento. É na hora do lanche, nos arredores da mesa que as conversas ficam mais animadas e descontraídas, os afetos vão sendo demonstrados e o alimento torna-se um elemento fundamental para a confraternização e o estreitamento de vínculos. “A alimentação, além de uma necessidade biológica, é um complexo sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos etc.” (Carneiro, 203). Além disso, preparar a comida que alimentará o convidado é uma forma extremamente prazerosa de dizer que o amigo ou amiga é bem-vindo. Por isso, acredito que não foi por acaso que o presente escolhido para me ser enviado foi o queijo, o alimento, o elemento agregador e vital.

Agora eu via Fátima tão próxima a mim como aquela senhora e aquele presente como demonstração do carinho mais genuíno.

Mais que nunca, saí dali compreendendo que é justamente na simplicidade das coisas, dos atos, da demonstração de afeto e cuidado que grandes transformações podem acontecer. Transformação no jeito de ver as pessoas a sua volta e, por que não, aquelas que ainda são virtuais, como responsabilidade sua, do que você diz e do que você cala como exemplo do que você quer que seja ou que se transforme essa sociedade tão desigual e suas posturas incoerentes.

Não foi apenas aquele alimento que me fortaleceu naquele dia e nos próximos, foi na verdade a delicadeza e o carinho com que ele e todos os sorrisos e abraços se manifestaram para me dizer que é no contato com gente de verdade que crescemos, nos fortalecemos seguimos confiantes em busca da realização dos nossos sonhos.

Obrigada a todos e um grande abraço!

Socorro Lacerda de Lacerda

EMEF Ana Figueiredo – Comunidade do Cardoso. Conceição-PB

Vir até o município de Conceição-PB, distante 2.542 km de nossa casa, significava, além do desejo de contar histórias em algumas de suas escolas da zona rural, também uma questão afetiva. Essa é a cidade onde Lucio (meu marido e também idealizador do projeto Conte lá que eu Conto cá) nasceu. Em nossas férias, ainda com os filhos bem pequenos, a cidade sempre esteve em nosso roteiro de viagens. Eram momentos preciosos de encontros com pessoas queridas, parentes próximos ou distantes, conversas descompromissadas com pessoas que íamos encontrando pela rua quando tentávamos aguçar a memória de cada uma delas em busca de lembranças do tempo dos nossos pais e dos nossos avós.

Por isso e pelo desejo de nos encontrarmos de uma forma “diferente” com a cidade e sua gente é que levar nosso projeto ao município de Conceição sempre foi dado como prioridade, como algo quase divino, indispensável. Nosso desejo latente de trazer para crianças da zona rural, momentos de alegria, contentamento e demonstração de que a leitura é o caminho para o real e o imaginário, nos leva inevitavelmente a querer compartilhar essa experiência em lugares que nos são caros.

Confesso, porém que não foi uma tarefa fácil entrar em contato com as escolas do município de Conceição-PB para agendarmos nossa visita. O caminho até a Secretaria de Educação foi tortuoso, cheio de desencontros de informações, telefonemas que não eram atendidos, e-mails que não eram respondidos, “nãos” ditos sem que nosso projeto fosse conhecido ou compreendido. Nossa insistência em continuar buscando contatos e desejando que nossa ida se concretizasse, não era apenas uma questão de benevolência pelo bom trabalho que acreditávamos estar fazendo, era também, e, muito especialmente, para tentarmos compreender como as informações chegavam até determinados órgãos e secretarias e quais eram as prioridades em relação à educação. Não estamos querendo dizer aqui que nosso projeto é indispensável, porém tentávamos compreender porque nossa comunicação não chegava até onde deveria. Quem filtra as informações? Quem julga se um projeto deve ou não deve ser aceito? Quem seleciona o que deve ou não ser prioritário?

Depois de muita teimosia, insistência, amigos tentando abrir canais de comunicação entre nós e a gestão municipal, contatos sendo buscados fora da secretaria de educação e da direção das escolas, enfim, uma série de acontecimentos e intermediações extremamente desnecessárias, caso houvesse um canal de comunicação aberto e respeitoso com quem pretende apresentar seus projetos, suas ideias, suas sugestões e mais que isso, sua intenção de colaborar para a qualidade da educação tantas vezes negligenciada por burocracias e falta de apoio efetivo. Nossos esforços e a ajuda de alguns amigos fizeram valer a pena e chegamos às escolas rurais do município com nossa mala carregada de histórias e nosso desejo cada vez mais latente de encontramos crianças que nos ouvissem e que fizessem dos livros que presentearíamos, objetos sedutores capazes de lhes imprimir as viagens necessárias para o mundo que desejam encontrar.
A primeira escola para onde fomos foi a EMEF Ana Figueiredo, na Comunidade do Cardoso. Um pequeno aglomerado de casas, com destaque para a casa grande e uma singela igrejinha recém pintada e muito bem cuidada. Impossível não direcionar o olhar para aquele lugar tão singular. Só as pessoas nos rodeando e alardeando nossa chegada nos fizeram perceber que já nos esperavam ansiosamente.

A escola é bem pequena, poucos alunos e muita curiosidade. Uma professora empenhada em fazê-los se comportarem bem. Por outro lado, eu tentando me aproximar de cada um deles e desejando que seu bom comportamento fosse não se calar diante das dúvidas, nem se retrair diante do desconhecido.

Enquanto organizávamos nossos materiais, dentro de uma sala de aula acompanhados pela professora, e curiosos na janela, entreguei propositalmente a um aluno uma máquina fotográfica e pedi que fotografasse o que mais gostava na escola. Minha intenção era descobrir e compreender o que, naquele lugar, era precioso para um aluno que talvez nunca tivesse sido estimulado a fazer uma observação cuidadosa daquele espaço, que deve representar conquistas significativas. O aluno saiu orgulhoso por portar o objeto desejado por outros colegas e foi pela escola seguido por outras crianças que tentavam influenciá-lo sobre o que deveria ou não fotografar. Os registros fotográficos foram extremamente significativos para me fazer compreender, o que, naquele espaço tão especial, chamava a atenção dos alunos e das alunas. Lousa com atividades escritas, um cartaz com envelopes colados e intitulado “Correio dos desejos”, uma estante amontoada de livros e objetos diversos, as merendeiras preparando o lanche, a placa com o nome da escola, as mesas do pátio ainda vazias, um filtro de barro e sua caneca de plástico à disposição de quem precisasse matar a sede, um relógio e um calendário confeccionados em cartolina, provavelmente pela professora.

Outros alunos e alunas também receberam a mesma tarefa: fotografar o que mais gostavam na escola. Coincidência ou não os registros foram muito parecidos. Objetos, cantinhos da escola e da sala de aula, pátio, atividades fixadas nas paredes. De gente em destaque, apenas as merendeiras que preparavam para o lanche um delicioso cachorro quente. Chamou-me a atenção o reduzido número de pessoas fotografadas, uma leitura conflitante de que escola se faz com gente nos espaços, nos caminhos, no entorno.

No decorrer da atividade, chamou-me a atenção o grande número de convidados para a audição das histórias. Nossa intenção sempre foi contar histórias para as crianças da forma mais simples, mais natural, deixando a liberdade fluir nas intervenções entre a contadora e os ouvintes e tentando não sair da rotina da escola. Aqui foi diferente, autoridades, convidados, mães, uma grande plateia formada mais por pessoas que não estão no cotidiano da escola do que pelos que fazem rotineiramente o trabalho com as crianças acontecerem. Isso me chamou a atenção. Diante da dificuldade que enfrentamos em relação à comunicação e ao agendamento para estarmos aqui, certamente queriam “desfazer” mal entendidos e mostrar que nos recebiam com satisfação. Que bom!

Não foram essas pessoas que me moveram a fazer a contação de histórias o melhor que pude, foi, na verdade, o pequeno número de crianças que, curiosas e atentas sentaram-se a minha frente para ouvir, falar, mostrar o que sabiam e revelar o quanto é preciso priorizar a leitura nos mais diversos momentos do cotidiano da escola. Como vimos em pesquisas anteriores, comprovada em nossa experiência de “caminhante”, 95% das escolas rurais não tem biblioteca ou sala de leitura, porém 75% delas conta com um pequeno acervo conseguido ou através de programas do governo, ou de doações. Isso significa que as professoras e professores não tem a oportunidade de escolher os títulos que a escola receberá. O uso que se faz desses livros é o grande diferencial para o trabalho com leitura. Cantinhos de Leitura, livros expostos em varais pendurados na sala de aula, banca de livros no pátio, panôs com bolsos transparentes para expor os livros, cortina de livros, livros dispostos em tapetes etc. Estas foram algumas das formas em que vimos as professoras e professores disporem do acervo para que alunos e alunas tivessem contato com os livros sem que esse contato se transformasse em um evento cada vez que um livro fosse usado. A leitura cotidiana, a contação de histórias, o livro sendo manuseado, olhado, lido, compartilhado, experienciado em suas várias formas de ler a palavra e a imagem é o que deve ser rotina. Livros encaixados cuidadosamente para que as crianças não rasguem, não sujem, não desapareçam com eles, não se prestam ao seu papel fundamental que é o de formar leitores e fazer deles pessoas que se reconheçam no que veem e no que leem, além do que apenas as palavras ditas ou contadas os fazem imaginar.

As brincadeiras no final da atividade foram muito prazerosas. Prazeroso também foi conversar com as pessoas que estavam presentes e que, para nossa alegria, procuraram conhecer um pouco mais sobre o projeto Conte lá que eu Canto cá, conversar com as crianças e falar sobre os livros, os brinquedos, as brincadeiras e os objetos dispostos em nossa colcha de retalhos.

Finalmente, fui até a igrejinha e, na lateral de uma casa simples, me aproximei de um jovem senhor que debulhava milho e jogava para as galinhas que se aproximavam fazendo um barulho com sons agudos e bater de asas frenético. O sorriso largo e as palavras de boas-vindas me deixaram à vontade para sentar ao seu lado e começar uma conversa a respeito das chuvas, das pequenas plantações, do milho colhido para alimentar os animais e garantir pamonhas e canjicas para as festas juninas. Fui embora daquele lugar com uma vontade danada de continuar aquela conversa. Enquanto as galinhas ciscavam para bicar a maior quantidade de milho, alunos e alunas se preparavam para voltarem para suas casas em caminhonetes com coberturas improvisadas. Enquanto eu, olhando o entorno e me despedindo daquele jovem senhor, pensava silenciosamente: a escola está aqui nesse terreiro e é preciso ensinar a ler cada uma dessas pessoas, desses animais, dessa terra batida e curtida pelo sol, dessas cercas de varas secas e levemente curvadas, dessa casa grande que já deve ter abrigado tantos moradores que saíram em busca de vidas melhores, do som dos bois e seus chocalhos que eu ouvia ao longe, das pedras que rolavam aos pés descompassados dos andantes e a tantas outras expressões que se apresentavam pedindo para serem lidas, vivenciadas, tocadas, experimentadas, levadas consigo na memória de cada um que por ali passava ou vivia, para se transformar em vida e em desejo de se viver de forma digna.

A escola estava bem diante dos meus olhos sem que ainda tivesse sido descoberta. Paulo Freire deve ter passado por ali quando pensou na importância da leitura de mundo. Uma leitura que não está em caixas nem em livros, mas que deve ser igualmente estimulada.

Nesse dia, li e reli aquele espaço como quem lê a própria vida desencadeada pelo olhar do estrangeiro, como quem chega em um lugar desconhecido e descobre que tudo aquilo lhe é tão familiar.

Em mim a alegria se fez presente, pois, naquele dia, minha leitura havia extrapolado minha contação de histórias.

Socorro Lacerda de Lacerda

Conte Lá Que Eu Conto Cá
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