A história da Cinderela, também conhecida como Gata Borralheira, é um conto de fadas extremamente popular. Podemos mesmo afirmar que esta narrativa é uma das mais famosas e até que ela tem influenciado a forma romântica como vemos o mundo.
Contação de Histórias
A importância de avaliar, refletir e resignificar nossas contações de histórias
Quando as histórias de um contador não provocam em seus ouvintes caras de espanto e expressões corporais que revelem susto, surpresa, olhos arregalados ou uma silenciosa atenção para não perder nada do que está sendo contado, certamente, as histórias ou o contador deixam a desejar, não são bons o suficiente para se fazer ouvir.
Lembrei-me disso logo após a contação de histórias na cidade de Rubinéia-SP, quando um grupo de alunos entre 4 e 10 anos chegou de ônibus ao local onde faríamos nossa apresentação. O lugar era amplo, com um palco ao fundo e piso bastante limpo.
Quando as crianças, acompanhadas pelo que eu pensei ser seus respectivos professores e professoras chegaram, sentaram-se no chão e todos os materiais que usaríamos já estavam organizados de modo a facilitar todo o roteiro. O som funcionou bem, eu estava animada, Lucio disposto, mas…
Comecei contando a história “O lobo que queria mudar de cor” (Orianne Lallemand e Éléonore Thuillier). Nem bem terminei a história, comecei a observar crianças dispersas e falantes. Algumas começaram a se deitar no chão, outras a provocar o colega ao lado ou brincar de coisas que nada tinham a ver com o que eu estava falando, pior ainda, coisas que desconcentravam a mim e aos outros que tentavam ouvir o que estava sendo contado.
Embora nas contações anteriores eu não tenha experimentado a necessidade de parar para fazê-los perceber que eu estava ali, parei de falar e esperei um pouco para iniciar outra história, apenas parei, não falei nada. Houve relativa atenção e silêncio suficientes para que eu pudesse continuar.
A atenção durou pouco tempo e novamente me senti extremamente desconfortável e desconcentrada. Parei novamente a história e pedi que eles me ouvissem mais um pouco. Por alguns momentos pensei em parar de contar as histórias, não o fiz porque trouxe para mim a insatisfação de não ser capaz de entretê-los. Minha avaliação acerca de tamanha dificuldade para continuar contando as histórias começou ali mesmo. Não desanimei, não desisti. Entretanto, esse foi um momento extremamente difícil. Meu entusiasmo e alegria, sempre tão presentes nas apresentações, foram se dissipando e por pouco o desânimo não tomou conta de mim.
Felizmente, uma das professoras se levantou, falou com a turma de modo enfático pedindo silêncio e se sentou no palco propositalmente para que as crianças percebessem que ela estava ali, vigiando-os. Aproveito aqui para agradecê-la. De certa forma, a partir disso a falta de atenção das crianças foi minimizada, mesmo sabendo que, a princípio, fora de uma forma que nada tinha a ver com o que eu estava fazendo. Infelizmente, não sei seu nome, pois nenhum dos professores ou professoras se apresentou ao chegar ou ao sair daquele espaço.
Essa falta de apresentação e recepção foi outra questão que nos fez parecer descartáveis. Foi preciso ligar pedindo que abrissem o espaço onde nos apresentaríamos. A pessoa que veio abrir o fez de forma mecânica, sem nos cumprimentar. Não sabemos o nome de ninguém que foi assistir e quando terminamos a apresentação estávamos sozinhos, Lucio e eu, sem saber como fechar o espaço para irmos embora. O barulho e a agitação provocados pelos alunos e alunas ao chegarem e irem embora tinha passado e agora tudo parecia mais silencioso do que realmente era. Fomos invadidos por um misto de decepção e falta de acolhimento. Novamente ligamos para a pessoa com a qual agendamos nossa visita e ela nos falou que podíamos deixar o portão aberto que ela enviaria alguém para fechar. O silêncio e os olhares vazios tomaram conta de nós. Saímos dali tristes.
Dissipamos nossa decepção ao irmos almoçar às margens do Rio Paraná e vislumbrar a exuberância de suas águas e das pessoas que usufruíam delas, quer seja pescando, andando de barco ou, como nós, caminhando por sua margem enquanto o almoço estava sendo preparado. Um belo lugar para repensarmos nossa sensação de frustração e ressignificá-la como algo de extrema riqueza para uma avaliação acerca das nossas limitações, escolha de repertório, comportamento entre as histórias e criatividade para contornar imprevistos.
Socorro Lacerda de Lacerda
Inquietação e curiosidade
Crianças bem pequenas, inquietas, saltitantes, curiosas, falantes. Crianças que nos ouviram e nos fizeram ouvir suas histórias, seus comentários, suas participações, tanto na interação com personagens da história contada quanto com a contadora em seus momentos de pausas com questionamentos sobre o que já estava sendo dito como se o dito não lhes bastasse, não fosse capaz de convencê-las ou estancar suas necessidades de continuar perguntando. Queriam saber mais, participar, interferir, interagir, inventar e reinventar o que estava posto, o que estava dito. Talvez esse seja o jeito de ser da criança, porém vos digo: daquelas crianças, não era apenas isso!
Para aquelas crianças o olhar e o tocar têm basicamente o mesmo significado, ambas as ações se completam de modo tão natural que não há como não compreender tão óbvia similaridade. O agradecer, o se deixar fotografar, o manuseio dos objetos ali expostos, o olhar de espanto, o grito dado quando o personagem aparece e a natural capacidade de dar vida à personagem de papel, transformando-os em monstros reais, capazes de abocanhar quem aparecer à sua frente. Ao mesmo tempo em que acreditam e trazem para próximos de si o que na realidade está muito distante, desacreditam rapidamente para incorporarem outros personagens amedrontadores ou não.
No ir e vir do ser e do deixar de ser, na mudança de um personagem para o outro com a mesma velocidade de seus inquietos pensamentos, vão se revelando medrosas ou corajosas, ousadas ou tímidas, vão se apropriando da liberdade que lhes é inerente para se mostrarem como são ou como gostariam de ser, afinal, no decorrer de toda a contação foram se colocando nas histórias como importantes personagens de uma trama individual e paralela que ia sendo construída simultaneamente à contada, ora se distanciando, ora se imbricando.
Nesse ponto da contação, as crianças já se expõem de forma tão intensa e sem censura que é bonito ver tamanha desenvoltura e entrega diante de narrativas que só existem enquanto são ditas.
– Tia, você vem contar histórias amanhã outra vez?
Querer que voltemos é dizer que gostou.
– Amanhã, não! Mas um dia voltaremos!
Socorro Lacerda de Lacerda
São Francisco – SP
Nosso agradecimento especial ao Sr. Daniel Fornielis e a todos os professores/as e funcionários/as da EMEI São Francisco, pela recepção calorosa e respeitosa. Nos sentimos verdadeiramente acolhidos.
Diferentes formas de se imaginar o mesmo objeto
Uma surpresa agradabilíssima foi chegar à Escola Dirce de Almeida Braga Wrasek e encontrar árvores frondosas e belas sombreando tapetes, almofadas e crianças que pegavam livros diversos dependurados por barbantes nos galhos das árvores.
Agradável também foi a forma como fomos recebidos, muito carinho e atenção demonstrados desde a ajuda para levar os nossos materiais até a quadra da escola onde contaríamos as histórias, o almoço cuidadosamente preparado pelas senhoras: Solange, Simone e Nena, e copos d’água gelados e transbordantes para amenizar aquele calor de muitos graus.
Tivemos tempo de andar pelo belo jardim da escola e circular por entre seus vários espaços visivelmente bem cuidados. Chamou-nos a atenção uma árvore, até então desconhecida, para nós, de flor exuberante, vagens generosas e fruto que nos fez querer saber se era comestível. Que árvore seria aquela? Embora tenhamos perguntado para várias pessoas só conseguimos saber seu nome quase na hora de nossa saída da escola: – Essa árvore é a “cacau falso” e algumas pessoas comem. Respondeu-nos um solícito senhor que nos deu a informação com uma satisfação impressionante nos mostrando o fruto para justificar o nome da árvore.
Na quadra alunos e alunas se organizaram em um semicírculo e fiquei muito a vontade para começar nossa contação de histórias. Algumas delas, contei usando objetos, outras imagens, recortes, personagens confeccionados em papel, tecido ou brinquedos feitos a partir de material reciclado. Ao terminar a contação, um aluno se aproximou e falou que quando eu usei o guarda-chuva para contar a história “O menino que colecionava guarda-chuvas” ele, pensou que eu fosse falar que o objeto podia se transformar em um barco ou no telhado de uma cabana. Apesar de várias outras possibilidades de transformação terem sido apresentadas pelo próprio autor da história, a criança não se limitou as opções dadas. Enquanto a história era sendo contada ele foi reelaborando novas possibilidades, buscando outras formas de, como Felipe, personagem da história, brincar com o guarda-chuvas de forma criativa e inimaginável para aqueles que não tem criatividade ou que não ousam extrapolar a realidade para brincar com a fantasia, o imaterial, o fantástico ou o que aparentemente não é possível vir a tona através de expressões corriqueiras.
Contar histórias, tem nos proporcionado, descobertas de gente, de lugares e de coisas que nos faz sentir privilegiados por podermos viver momentos tão ricos. Estamos aprendendo enquanto caminhamos, enquanto ouvimos, enquanto desejamos ser ouvidos. O que nos impulsiona é o olho inquieto da criança que se aproxima de nós para pegar em um objeto que acabamos de mostrar, de expor, de usar. Ao passar para suas mãos esse mesmo objeto vai magicamente se transformado naquilo que a criança quiser e por quanto tempo ela quiser. Às vezes apenas o tempo suficiente para transformar a fita que decora o pau de chuva em um cabo de aço inquebrantável. Essa é a magia da contação de histórias.
Ainda ouvimos as histórias dos alunos Davi e Felipe, que respectivamente contaram as histórias dos Três Porquinhos e outra autoral, em que um menino que sai de casa para comprar pão se perde na floresta Amazônica e tenta, de várias maneiras, voltar para casa. Enquanto contava a história, Felipe repetia constantemente que naquele tempo não existia telefone celular, segundo ele, se existisse era só ligar para casa e avisar pedindo ajuda. Mesmo sem celular, o menino conseguiu “se salvar” construindo objetos que não necessitam de nenhum equipamento eletrônico para serem construídos. Felipe conseguiu transitar entre o mundo real, no qual ele vive e onde o telefone celular é praticamente a extensão do corpo das pessoas, e, o mundo imaginário, onde a natureza é fascinante e dominante tanto oferecendo o perigo quanto as possibilidades para se livrar dele. A beleza dessa viagem entre o real e o imaginário é que Felipe reconhecia que se ele tivesse em mãos o telefone celular, tudo poderia ser resolvido facilmente, a grandiosidade de sua narrativa está justamente por ele saber da existência do telefone celular e não lançar mão dele para resolver o problema do personagem. Seu esforço para buscar outra solução nos revela sua maturidade criativa ao reconhecer que as histórias não precisam serem simplificadas apenas pelo fato de se conhecer no tempo de agora, elementos facilitadores para a resolução de conflitos de outros tempos.
Socorro Lacerda de Lacerda e Lucio Lacerda
Nossos sinceros agradecimentos à Secretária de Educação do Município de Aparecida D’Oeste, Fernanda Carvalho de Menezes, à diretora da Escola Dirce de Almeida Braga Wrasek, Amanda V. Felício Tominaga, a coordenadora, Marta Eliana G de Sanches e ao corpo docente e funcionários: Valdirene, Aracélia, Kerusca, Alma, Felipe, Regiane, Maria Aparecida, Érica, Carlos, Simone, Elton, patrícia, Cirlene, Gilza, Carla, Adriane e Zeiza.
Bandeira do Sul – MG: Uma Cidade Sonora
Uma praça em uma minúscula cidade entre montanhas, uma igrejinha singela à frente, belas árvores em seu entorno e pássaros cantando generosamente o tempo inteiro. Esse bem que poderia ser o cenário de alguma das histórias que eu conto, ou de outras que já li, entretanto, esse é o lugar onde estendi minha colcha de retalhos e recebi crianças e adultos para ouvir o que eu havia preparado para lhes contar.
Naquele cenário, em vários momentos me senti dentro das histórias. A sonoridade harmoniosa dos pássaros incansáveis serviu de trilha sonora para o “Ping” e suas sementes plantadas e sonhadas com belas flores que lhes garantiriam ser o herdeiro do imperador. À sombra das árvores fomos “Felipe”, o menino que amava a avó que lhe ensinou o que é saudade. Com as cores e tons presentes naquela pracinha tão especial, aprendemos que o amor pode ser de qualquer cor e de todas as cores e, finalmente com as crianças sentadas à sombra daquele jatobá, seus sorrisos e expressões diversos de contentamento, encantamento ou espanto me davam a sensação de que tudo o que eu desejava naquele momento era que o tempo passasse bem lentamente para que eu pudesse me impregnar de cada sentimento ali experimentado.
Eu, no centro da roda, tentava rodopiar, imitar animais e seus sons, me envolver em véus coloridos e em colchas de retalhos, badalar um velho chocalho e fazer do atrito entre centenas de tampinhas de garrafas coloridas o som de uma chuva que só cabia na história que eu estava contando. Entre a “ilha dos sentimentos” e a bela floresta onde vivia o curioso elefantinho cinza, transitávamos com toda a desenvoltura de que precisávamos para ir de um lugar a outro tão rápido quanto o barco da alegria.
Diante de mim e junto a todas as pessoas que me ouviam, estava Maria Clara com sua meiguice, alegria e um enorme desejo de trazer toda aquela fantasia para o mundo real. A cada história que eu contava Maria Clara encontrava uma forma de participar: repetindo falas, respondendo a pergunta de algum personagem, questionando as atitudes de outros, arregalando os olhos quando algum objeto ou movimento lhe pegava de surpresa, negando ajuda a personagens incompreendidos, se inquietando no colchonete onde estava sentada para mostrar que tudo o que ela estava fazendo era a forma mais genuína de uma participação efetiva naquilo que a havia envolvido enquanto cenário e lugar imaginário.
Maria Clara representa todas as crianças que, felizmente, não questionam a diferença entre o real e o imaginário, se importando apenas com o momento em que vivem. Sem medo, sem vergonha, sem censura e, principalmente, sem o rigor do adulto que sente a necessidade de nomear ou racionalizar cada sentimento, cada momento. E eu, feliz por encontrar essa menina, segurei em sua mão e peguei carona como se tudo aquilo nos pertencesse, como se tivéssemos entrado no mundo do faz de conta simplesmente para seguirmos encantadas até chegarmos a uma praça minúscula de uma cidade entre montanhas, com uma igrejinha singela à frente, belas árvores em seu entorno e pássaros cantando generosamente o tempo inteiro.
Obrigada à Bandeira do Sul – MG e a todas as crianças que rodearam minha colcha de retalhos e ouviram generosamente as histórias sem saber que a história mais bonita era eu quem estava vendo e ouvindo.
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Socorro Lacerda e Lucio Lacerda