Seja bem-vinda!

Muitas foram as emoções, sensações e descobertas que nos foram ofertadas pelos novos amigos que fizemos em Santa Clara d’Oeste. Quando escolhemos a região para levarmos o projeto “Conte lá que eu conto cá”, não imaginávamos que nossa passagem seria tão rica, tanto em relação às histórias que contamos e ouvimos, quanto às amizades que fizemos com as pessoas que fomos encontrando pelo caminho. Gente da melhor qualidade e recepção carregada de generosidade, como se já fossemos velhos amigos.

Por acaso, ou talvez não, quando contamos aos amigos Osvaldo e Cristina que íamos para aquela região, eles ficaram extremamente entusiasmados e imediatamente falaram que deveríamos nos hospedar na casa da mãe dele. Falou isso sem nem ter conversado com sua mãe. Ficamos aquietados, pois acreditávamos que logo ele esqueceria daquele assunto e faríamos nossa viagem como fazemos na grande maioria das vezes, ficando em pousadas simples.

Nossa surpresa foi saber que ele não esqueceu e nos procurou para falar que já tinha combinado tudo com sua mãe e ela iria nos receber. Lucio e eu ficamos tímidos e combinamos que tudo ia depender da forma como seríamos recebidos. Acreditando que tudo é energia, falei que dependendo da energia que “rolasse” ao chegarmos e nos cumprimentarmos, ficaríamos ou não, daríamos uma desculpa e procuraríamos a cidade mais próxima.

Ao chegarmos à casa da Senhora Marielza e do Senhor Toninho, ela e mais duas auxiliares estavam podando o jardim. Nos receberam com alegria, mas também bastante surpresa, pensou que ligaríamos antes de irmos até lá.

Lucio ficou mais para trás enquanto eu tentei parecer bem natural, já fui lhe cumprimentando e elogiando a beleza do jardim, de sua varanda em L, acompanhando todo o comprimento da casa. Eram elogios verdadeiros. Insisti para que ela continuasse o trabalho, mas sua insistência para nos acomodarmos foi maior. Ficamos em um quarto amplo e arejado, com um ar-condicionado que nos foi muito útil nas noites superquentes da cidade de Santa Clara e de toda a região. De uma cômoda de madeira maciça ela tirou toalhas limpinhas e cheirosas e de um velho baú, segundo ela com mais de cinquenta anos, vieram os lençóis que nos aconchegariam à noite. Foi bonito de ver aqueles móveis antigos e belos sendo abertos por mãos velozes e generosas que mostravam uma intimidade em seu abre e fecha na busca dos acessórios, enquanto eu ainda tentava entender aquele espaço e aquela senhora que mal acabara de conhecer e me tratava como se já fôssemos velhas conhecidas. Falante, ágil em seus movimentos e afazeres Marielza ia desvendando os mistérios daquela casa como se precisasse apresentá-la também como nossa, como o encontro de alguém com o lugar que antigamente vivera. Os quartos, as salas, a cozinha sem portas para fechar revelava o quanto aquele espaço era aconchegante. Foi na cozinha onde a maioria das conversas se deu, onde era decidido o que comeríamos e onde ingredientes naturais eram transformados em iguarias refinadas e deliciosas: o peixe que o Toninho acabara de trazer do rio Grande e o quintal servindo de verdadeiro mercado onde era colhida a graviola ou o limão para o suco, galinha caipira, o jiló cuidadosamente frito, além de temperos frescos que exalavam seu perfume mesmo antes de serem colhidos. Além das conversas animadas, ainda nos encantávamos com os pássaros que vinham se alimentar nos comedouros instalados nos beirais do telhado ao redor da casa. Que riqueza!

Na despedida, inevitavelmente o choro, impossível de disfarçar, revelando o quanto a amizade entre nós estava consolidada. E entre o choro, a alegria de termos vindo e ficado ali, o convite para que voltássemos quando quiséssemos e a promessa de que da próxima vez faríamos mais passeios pela região, Marielza ia colocando em nossas sacolas o sabão que fizera, a graviola madura, o mamão que trouxe do sítio da irmã, a polpa de fruta e a bananada feita no fogão à lenha e revezada em mexidas lentas, acompanhando a beirada da panela e as piadas que nos fizeram resistir bravamente até às 2h da madrugada para que o doce chegasse ao ponto em que Marielza insistia ser o ideal. Sua teimosia valeu a pena, o doce não poderia ter ficado mais saboroso.

Trouxemos conosco as alegrias dessa nova amizade e o cheiro do pão caseiro invadindo a casa, bananada fumegando no fogão à lenha, beija-flor bebendo água na mão da dona da casa, papagaio gritando “papai” e lhe pedindo comida, biscoito de pinga no café da manhã, suco de graviola tirada do pé, queijo fresco comprado na porta e feito artesanalmente por um senhor de confiança, jardim sendo podado como se fosse uma festa, pássaros em seus comedouros ao ar livre na beirada do telhado da varanda, sorriso farto nos recepcionando na volta das contações de histórias, o infindável repertório de piadas alegrando-nos a qualquer hora, bate-papo descompromissado embaixo da mangueira, missa no final da tarde, rio correndo em busca de outros rios, o cheiro de café coado na hora.
Tudo o que vivemos ali foi parte significativa de uma história que ainda não terminou.

Obrigada, Osvaldo e Cristina! Obrigada, Marielza e Toninho!

Socorro Lacerda de Lacerda

Socorro Lacerda

Inquietação e curiosidade

Crianças bem pequenas, inquietas, saltitantes, curiosas, falantes. Crianças que nos ouviram e nos fizeram ouvir suas histórias, seus comentários, suas participações, tanto na interação com personagens da história contada quanto com a contadora em seus momentos de pausas com questionamentos sobre o que já estava sendo dito como se o dito não lhes bastasse, não fosse capaz de convencê-las ou estancar suas necessidades de continuar perguntando. Queriam saber mais, participar, interferir, interagir, inventar e reinventar o que estava posto, o que estava dito. Talvez esse seja o jeito de ser da criança, porém vos digo: daquelas crianças, não era apenas isso!

Para aquelas crianças o olhar e o tocar têm basicamente o mesmo significado, ambas as ações se completam de modo tão natural que não há como não compreender tão óbvia similaridade. O agradecer, o se deixar fotografar, o manuseio dos objetos ali expostos, o olhar de espanto, o grito dado quando o personagem aparece e a natural capacidade de dar vida à personagem de papel, transformando-os em monstros reais, capazes de abocanhar quem aparecer à sua frente. Ao mesmo tempo em que acreditam e trazem para próximos de si o que na realidade está muito distante, desacreditam rapidamente para incorporarem outros personagens amedrontadores ou não.

No ir e vir do ser e do deixar de ser, na mudança de um personagem para o outro com a mesma velocidade de seus inquietos pensamentos, vão se revelando medrosas ou corajosas, ousadas ou tímidas, vão se apropriando da liberdade que lhes é inerente para se mostrarem como são ou como gostariam de ser, afinal, no decorrer de toda a contação foram se colocando nas histórias como importantes personagens de uma trama individual e paralela que ia sendo construída simultaneamente à contada, ora se distanciando, ora se imbricando.

Nesse ponto da contação, as crianças já se expõem de forma tão intensa e sem censura que é bonito ver tamanha desenvoltura e entrega diante de narrativas que só existem enquanto são ditas.
– Tia, você vem contar histórias amanhã outra vez?
Querer que voltemos é dizer que gostou.
– Amanhã, não! Mas um dia voltaremos!

Socorro Lacerda de Lacerda
São Francisco – SP

Nosso agradecimento especial ao Sr. Daniel Fornielis e a todos os professores/as e funcionários/as da EMEI São Francisco, pela recepção calorosa e respeitosa. Nos sentimos verdadeiramente acolhidos.

Diferentes formas de se imaginar o mesmo objeto

Uma surpresa agradabilíssima foi chegar à Escola Dirce de Almeida Braga Wrasek e encontrar árvores frondosas e belas sombreando tapetes, almofadas e crianças que pegavam livros diversos dependurados por barbantes nos galhos das árvores.

Agradável também foi a forma como fomos recebidos, muito carinho e atenção demonstrados desde a ajuda para levar os nossos materiais até a quadra da escola onde contaríamos as histórias, o almoço cuidadosamente preparado pelas senhoras: Solange, Simone e Nena, e copos d’água gelados e transbordantes para amenizar aquele calor de muitos graus.

Tivemos tempo de andar pelo belo jardim da escola e circular por entre seus vários espaços visivelmente bem cuidados. Chamou-nos a atenção uma árvore, até então desconhecida, para nós, de flor exuberante, vagens generosas e fruto que nos fez querer saber se era comestível. Que árvore seria aquela? Embora tenhamos perguntado para várias pessoas só conseguimos saber seu nome quase na hora de nossa saída da escola: – Essa árvore é a “cacau falso” e algumas pessoas comem. Respondeu-nos um solícito senhor que nos deu a informação com uma satisfação impressionante nos mostrando o fruto para justificar o nome da árvore.

Na quadra alunos e alunas se organizaram em um semicírculo e fiquei muito a vontade para começar nossa contação de histórias. Algumas delas, contei usando objetos, outras imagens, recortes, personagens confeccionados em papel, tecido ou brinquedos feitos a partir de material reciclado. Ao terminar a contação, um aluno se aproximou e falou que quando eu usei o guarda-chuva para contar a história “O menino que colecionava guarda-chuvas” ele, pensou que eu fosse falar que o objeto podia se transformar em um barco ou no telhado de uma cabana. Apesar de várias outras possibilidades de transformação terem sido apresentadas pelo próprio autor da história, a criança não se limitou as opções dadas. Enquanto a história era sendo contada ele foi reelaborando novas possibilidades, buscando outras formas de, como Felipe, personagem da história, brincar com o guarda-chuvas de forma criativa e inimaginável para aqueles que não tem criatividade ou que não ousam extrapolar a realidade para brincar com a fantasia, o imaterial, o fantástico ou o que aparentemente não é possível vir a tona através de expressões corriqueiras.

Contar histórias, tem nos proporcionado, descobertas de gente, de lugares e de coisas que nos faz sentir privilegiados por podermos viver momentos tão ricos. Estamos aprendendo enquanto caminhamos, enquanto ouvimos, enquanto desejamos ser ouvidos. O que nos impulsiona é o olho inquieto da criança que se aproxima de nós para pegar em um objeto que acabamos de mostrar, de expor, de usar. Ao passar para suas mãos esse mesmo objeto vai magicamente se transformado naquilo que a criança quiser e por quanto tempo ela quiser. Às vezes apenas o tempo suficiente para transformar a fita que decora o pau de chuva em um cabo de aço inquebrantável. Essa é a magia da contação de histórias.

Ainda ouvimos as histórias dos alunos Davi e Felipe, que respectivamente contaram as histórias dos Três Porquinhos e outra autoral, em que um menino que sai de casa para comprar pão se perde na floresta Amazônica e tenta, de várias maneiras, voltar para casa. Enquanto contava a história, Felipe repetia constantemente que naquele tempo não existia telefone celular, segundo ele, se existisse era só ligar para casa e avisar pedindo ajuda. Mesmo sem celular, o menino conseguiu “se salvar” construindo objetos que não necessitam de nenhum equipamento eletrônico para serem construídos. Felipe conseguiu transitar entre o mundo real, no qual ele vive e onde o telefone celular é praticamente a extensão do corpo das pessoas, e, o mundo imaginário, onde a natureza é fascinante e dominante tanto oferecendo o perigo quanto as possibilidades para se livrar dele. A beleza dessa viagem entre o real e o imaginário é que Felipe reconhecia que se ele tivesse em mãos o telefone celular, tudo poderia ser resolvido facilmente, a grandiosidade de sua narrativa está justamente por ele saber da existência do telefone celular e não lançar mão dele para resolver o problema do personagem. Seu esforço para buscar outra solução nos revela sua maturidade criativa ao reconhecer que as histórias não precisam serem simplificadas apenas pelo fato de se conhecer no tempo de agora, elementos facilitadores para a resolução de conflitos de outros tempos.

Socorro Lacerda de Lacerda e Lucio Lacerda

Nossos sinceros agradecimentos à Secretária de Educação do Município de Aparecida D’Oeste, Fernanda Carvalho de Menezes, à diretora da Escola Dirce de Almeida Braga Wrasek, Amanda V. Felício Tominaga, a coordenadora, Marta Eliana G de Sanches e ao corpo docente e funcionários: Valdirene, Aracélia, Kerusca, Alma, Felipe, Regiane, Maria Aparecida, Érica, Carlos, Simone, Elton, patrícia, Cirlene, Gilza, Carla, Adriane e Zeiza.

Preparativos para mais uma etapa

Estamos organizando nossa 3ª etapa do projeto “Conte lá que eu conto cá”. A preparação para uma etapa acontece sempre com antecedência para que possamos organizar tudo o que envolve uma contação de histórias nos moldes do que nos propomos: escolha da região do Brasil para onde pretendemos ir, pesquisa sobre as menores cidades dessa região e que tenham escolas rurais, envio de e-mail ou telefonemas, montagem de cronograma, escolha e preparação das histórias que serão contadas, campanha de doação de livros que serão levados para os estudantes e formadores, confecção de sacolas, em tecido, para levarmos os kits de livros, checagem de som, revisão do carro, escolha do figurino.

Como se vê, há todo um processo antes de pegarmos a estrada. Há toda uma disposição nossa para que as histórias contadas sejam momentos de alegria, compartilhamento de saberes, diversão e divulgação da importância da leitura e do contar histórias como momentos da construção de nossa identidade e afloramento de nossas memórias afetivas.

Apesar de tudo isso, estamos enfrentando dificuldades em relação ao agendamento das cidades e, consequentemente, das escolas rurais, para onde pretendemos ir, principalmente pela falta de resposta aos e-mails, enviados por nós, para as secretarias de educação das cidades escolhidas. Outra dificuldade enfrentada é por estar cada vez mais reduzido o número de escolas rurais nos municípios.

Para minimizar esses problemas, fizemos algumas adaptações em nosso projeto. Quando a cidade não tem escolas rurais, mas tem uma pequena população (de até 5.000 habitantes), fazemos a contação de histórias nas escolas urbanas e, além dos emails enviados, também fazemos contatos com as secretarias de educação ou diretamente com as escolas através de telefonemas. Essas mudanças têm nos ajudado a tomarmos decisões mais assertivas e termos respostas da aceitação ou não do nosso projeto com maior rapidez e eficiência.

Nossa 3ª etapa será no Sudoeste do Estado de São Paulo e já temos confirmadas contações de histórias em várias cidades. O cronograma já está sendo divulgado e nossa mala de contação está ficando recheada de ideias.

Um abraço em todo/as!

Socorro Lacerda e Lucio Lacerda

Bandeira do Sul – MG: Uma Cidade Sonora

Uma praça em uma minúscula cidade entre montanhas, uma igrejinha singela à frente, belas árvores em seu entorno e pássaros cantando generosamente o tempo inteiro. Esse bem que poderia ser o cenário de alguma das histórias que eu conto, ou de outras que já li, entretanto, esse é o lugar onde estendi minha colcha de retalhos e recebi crianças e adultos para ouvir o que eu havia preparado para lhes contar.

Naquele cenário, em vários momentos me senti dentro das histórias. A sonoridade harmoniosa dos pássaros incansáveis serviu de trilha sonora para o “Ping” e suas sementes plantadas e sonhadas com belas flores que lhes garantiriam ser o herdeiro do imperador. À sombra das árvores fomos “Felipe”, o menino que amava a avó que lhe ensinou o que é saudade. Com as cores e tons presentes naquela pracinha tão especial, aprendemos que o amor pode ser de qualquer cor e de todas as cores e, finalmente com as crianças sentadas à sombra daquele jatobá, seus sorrisos e expressões diversos de contentamento, encantamento ou espanto me davam a sensação de que tudo o que eu desejava naquele momento era que o tempo passasse bem lentamente para que eu pudesse me impregnar de cada sentimento ali experimentado.

Eu, no centro da roda, tentava rodopiar, imitar animais e seus sons, me envolver em véus coloridos e em colchas de retalhos, badalar um velho chocalho e fazer do atrito entre centenas de tampinhas de garrafas coloridas o som de uma chuva que só cabia na história que eu estava contando. Entre a “ilha dos sentimentos” e a bela floresta onde vivia o curioso elefantinho cinza, transitávamos com toda a desenvoltura de que precisávamos para ir de um lugar a outro tão rápido quanto o barco da alegria.

Diante de mim e junto a todas as pessoas que me ouviam, estava Maria Clara com sua meiguice, alegria e um enorme desejo de trazer toda aquela fantasia para o mundo real. A cada história que eu contava Maria Clara encontrava uma forma de participar: repetindo falas, respondendo a pergunta de algum personagem, questionando as atitudes de outros, arregalando os olhos quando algum objeto ou movimento lhe pegava de surpresa, negando ajuda a personagens incompreendidos, se inquietando no colchonete onde estava sentada para mostrar que tudo o que ela estava fazendo era a forma mais genuína de uma participação efetiva naquilo que a havia envolvido enquanto cenário e lugar imaginário.

Maria Clara representa todas as crianças que, felizmente, não questionam a diferença entre o real e o imaginário, se importando apenas com o momento em que vivem. Sem medo, sem vergonha, sem censura e, principalmente, sem o rigor do adulto que sente a necessidade de nomear ou racionalizar cada sentimento, cada momento. E eu, feliz por encontrar essa menina, segurei em sua mão e peguei carona como se tudo aquilo nos pertencesse, como se tivéssemos entrado no mundo do faz de conta simplesmente para seguirmos encantadas até chegarmos a uma praça minúscula de uma cidade entre montanhas, com uma igrejinha singela à frente, belas árvores em seu entorno e pássaros cantando generosamente o tempo inteiro.

Obrigada à Bandeira do Sul – MG e a todas as crianças que rodearam minha colcha de retalhos e ouviram generosamente as histórias sem saber que a história mais bonita era eu quem estava vendo e ouvindo.

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Socorro Lacerda e Lucio Lacerda

Conte Lá Que Eu Conto Cá
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