Ir à cidade de Olho D’água-PB e contar histórias na escola do “Distrito do Socorro”, foi uma volta ao tempo. Ao tempo cronológico e ao tempo mnemônico que tanto busco e rebusco quando preciso evocar minha infância e adolescência. Quando penso em quem fui, quem sou e em tudo que constitui minha identidade.
Muitas foram as tardes em que minha mãe costurava em sua antiga máquina de costura, roupas para seus muitos filhos, enquanto compartilhamos leituras. Ela costurava enquanto nós líamos para nós e para ela. À noite, meu pai era o contador de histórias, a calçada era seu palco com público fiel que não poupava expressões faciais e corporais. Ríamos e nos assustávamos, o sono chegava e tentávamos afugentá-lo para ouvirmos mais uma história. São essas histórias que reverberam no meu mais intenso eu quando me percebo mulher, esposa, professora, mãe, avó e agora contadora de histórias misturadas entre as ouvidas, as vividas, as lidas e as inventadas como síntese de tudo que experimentei nessa minha trajetória que tento viver intensamente.
Foi na cidade de Olho D’água que aprendi a contar histórias com meu pai, que descobri o prazer e a alegria de ler, quando pegava livros na biblioteca da escola onde fui alfabetizada, onde me embalei no giro do pião, nas cantigas de roda formada por mãos entrelaçadas de crianças que flutuavam na poeira que levantavam no ritmo da pisada, no bailado da canção e dos seus versos rimados e repetidos, nos jogos de bolas de gude incandescentes e brilhantes.
Nessa cidade tive meu primeiro namorado, tomei banhos de lagoa, vi roupas quarando nos lajedos esbranquiçados pelo sabão que as lavadeiras usavam. Dancei forró, debulhei milho e feijão, admirei um céu estrelado sem interferência de outras luzes, rezei novenas e ladainhas, admirei girandolas circulando em fogo e rojões com seu barulho assustador. Nas procissões cantei cantos de louvor, na igreja rezei benditos. Vi secas e enchentes contrastando em um tempo diferente e incompreendido.
Nas ruas da minha infância, quando ainda eram de terra batida, acompanhei lavadeiras em passos lentos e elegantes equilibrando suas trouxas de roupas secas ao sol escaldante e branqueadas com anil dissolvido em grandes bacias de alumínio que mais pareciam poços espelhados. Brinquei com carrinhos feitos com latas, bois inventados com ossos, casinhas e seus guisados em panelas minúsculas feitas pela louceira Maria Vicente.
Inesquecível foi comer o pão enxertado com doce de coco caprichosamente preparado pela Tinane, o cuscuz de arroz, a pamonha e a canjica, os bolos preparados em fornos à lenha e as latas de sardinha e goiabada servindo de fôrma para os bolos de Tonha Felício
Passear na feira, aos sábados, era um verdadeiro deleite, buscávamos novidades, ouvíamos os vendedores e seus pregões, o rouge e batons das matutas, a brilhantina lustrando os cabelos de rapazes vaidosos, a última moda, os picolés coloridos, as chitas floridas, as sandálias entrelaçadas, os namoros iniciados e as conversas descompromissadas no beco da igreja.
Olho D’água é o meu berço cultural, não apenas porque, como já disse, me alfabetizei em um grupo escolar desta cidade. Mas, também porque tive o meu primeiro contato com autores que mais tarde fariam parte da minha vida em leituras frequentes e prazerosas. Drummond, J. G. de Araújo Jorge, Vinícius de Moraes, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego e tantos outros. Nas Mil E Uma Noites viajei por lugares longínquos e belos, entre bruxas e fadas, anões e gigantes, princesas e plebeus, imperadores e seu palácios suntuosos, suas barbas azuis, seus olhos de esmeraldas. Além de autores e personagens que lia e ouvia, convivi com muitos mais que carrego numa mistura de real e fantasia sem me preocupar em classifica-los: João Salviano, “Profiro”, Cambota de Alvino, Maria Vicente, seu Manú, Nequinho de Zé de Eva, Chico Pé de Bola, Zé Maleiro, Dona Dedé de Piricoco, Derli de Lica, Maria de Zé de Deça, Nego Pepé, Seu Lau, Maria Vermelha, Chico Preto, Loreta, Zé Baleado, Zé Cidelino, Tinane, Nanô, Joana Gambarra, João Gato, Zé Cariri e tantos outros, dignos de passearem pelos enredos de Graciliano Ramos ou José Lins do Rego.
Se Drumonnd, em sua poesia Infância, ainda não tivesse dito “E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé”, eu diria agora.
Trago Olho D’água comigo e isso é bom. Isso é muito bom.
Socorro Lacerda de Lacerda