Isso é coisa de criança?

Isso é coisa de criança!
Essa fala estava estampada na cara de alguns adolescentes que foram convidados para ouvir a contação de histórias junto aos alunos e alunas do Ensino Fundamental I. A EMEF – Carlos Monteiro de Oliveira era a primeira escola para onde fomos, que funcionava com um grande número de salas distribuídas entre o Ensino Fundamental I e II. Era uma escola urbana, diferente das rurais que priorizamos em nosso projeto. O número de alunos passava dos cem e a escola, embora grande, não tinha nenhum espaço que comportasse todos ao mesmo tempo. Não houve outro jeito senão levá-los ao pátio do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), que fica vizinho à escola.
A coordenadora demonstrou certa preocupação em trazer alunos das diversas faixas etária para o mesmo espaço para ouvir as estórias. Segundo ela, um grande número de alunos poderia causar indisciplina. Respondi que uma boa história pode ser contada ou ouvida em qualquer idade.
Na verdade, a preocupação dela era em relação a disciplina/indisciplina.
Não era isso que alguns adolescentes pensavam. O que eles pensavam mesmo era:
– Isso é coisa de criança.
Os sorrisos só se alargaram e a animação se fez presente quando alguém falou que, se a contação de histórias demorasse até às 11h20, eles não precisariam voltar à sala de aula. Essa descoberta fez os adolescentes chegarem animados, cada um carregando a sua cadeira e torcendo para que tudo fosse feito sem pressa. O mais importante para a maioria deles era que o tempo passasse e ninguém precisasse mais assistir aula naquele dia.
Por outro lado, as crianças do Ensino Fundamental I chegavam curiosas, animadas, felizes, carregando suas cadeiras como algo valoroso que lhes garantiriam conforto para o momento que se aproximava.
Todos se misturaram, professores e professoras, diretora, coordenadora e alguns curiosos encontraram lugares para ouvir o que eu estava pronta para contar.
A cada história contada, a quantidade de olhos atentos e posturas confiantes aumentavam consideravelmente. Todos ouviam com atenção e até esboçavam respostas para perguntas que alguns personagens faziam aos outros. O olhar no olho do outro que eu tanto gostava de fazer quando estava contando alguma história, teve, nessa sessão, uma importância ainda maior. Era nessa interação de olhares que eu ia percebendo quando o desejo de ouvir ou a curiosidade que os movia para a continuidade da contação era maior do que o desejo de não voltar mais à sala de aula. Fazendo gestos, cruzando olhares, admirando corpos sentados despretensiosos no chão, fui fazendo da minha contação de histórias ricos e belos momentos de desafios para transformar o que eu contava naquilo que eles desejavam ouvir. Porém, como saber o que eles desejavam ouvir? Isso também descobri no exercício de olhar nos olhos de quem estava próximo a mim. Percebi que quem gosta do que ouve transforma seus olhos em ouvidos e os fixa em quem fala, não muda rapidamente a posição dos olhos, não foge de um contato visual insistente, não busca outros olhares. De história em história, de aplauso em aplauso, de objeto a objeto, as estórias foram fluindo e o tempo já não era mais motivo de preocupação quanto a se daria tempo ou não para voltarem à sala de aula.
Quando convidei alguns alunos e alunas para ler o cordel da história da cidade que eu havia escrito, muitos foram os adolescentes que se dispuseram a fazer. Deixei que viessem todos, leram em um verdadeiro jogral, em tons e volumes diversos, ficaram orgulhosos por participarem, sentiram-se importantes por reconhecerem-se naquela história, também buscaram os olhares de quem os ouvia, os gestos de quem os assistia.
Ao final da leitura, os aplausos foram entusiasmados, a emoção tomou conta e não ouvi ninguém perguntar que hora era aquela, se ainda dava tempo de voltar à sala de aula. Corpos leves, ideias fluindo, imagens montadas e desmontadas a partir de personagens que acabaram de conhecer, de lugares que acabaram de visitar, de situações em que foram capazes de se desvencilhar com habilidade e coragem. Tudo isso e a delicadeza com que vieram até onde eu estava para se despedir, me abraçando e agradecendo, foi possível ler no rostinho de cada um daqueles adolescentes:
– Isso não é coisa de criança!

Socorro Lacerda de Lacerda

Uma colcha de retalhos: lugares distantes, momentos inesquecíveis, pessoas especiais.

Na Escola Manoel Procópio de Araújo, no distrito do Socorro, município de Olho D’água-PB, coisas boas não param de acontecer. Hoje destaco o empenho, competência e compromisso da professora Maria Aparecida de Sousa Carvalho que, com sua inquietação em relação ao trabalho com leitura e escrita, incentiva e envolve alunos e alunas através de atividades diversas e materiais quase sempre confeccionados por ela própria. Sua prática em sala de aula tem deixado importantes marcas na construção de uma educação séria e de qualidade.
Desta vez ela trabalhou com o livro Colcha de Retalhos – Conceil Corrêa da Silva e Nye Ribeiro – Ed. do Brasil. Após a leitura, os alunos e alunas trabalharam com seu próprio retalho de tecido como base para suas expressões artísticas, de memória e de fragmentos de suas histórias de vida.
Quando a professora propõe uma atividade como essa, que mexe com sentimentos tão íntimos como saudades e lembranças, oferece aos alunos e alunas uma grande oportunidade para se expressarem de forma verdadeira. Além de serem ricos momentos que certamente farão parte da constituição de suas identidades, todos os envolvidos ganham muito, além do próprio saber/conhecer, ganham com as relações interpessoais que vão se estabelecendo carregadas de muita cumplicidade e respeito.

Essa cumplicidade e paixão pelo que faz é relatada pela professora Maria Aparecida, de forma extremamente comovente:

“Nesta segunda feira eu contei a história da Colcha de retalhos. Foi um momento gratificante, afinal, SAUDADES é uma palavra que nos define.
Foi maravilhoso ouvir a história de cada retalho. O choro da saudade que nos levava a lugares distantes, momentos inesquecíveis, pessoas especiais. ”

Que você continue se emocionando com o que faz e com o que deseja fazer. É dessa forma que as melhores coisas acontecem.

Um grande abraço!

EM Miguel Arcanjo Pereira – Sítio Brabo – Jardim do Seridó/RN

Entre a BR 427 e o sítio Brabo, precisei descer do carro para abrir a porteira que nos daria acesso à estrada de terra que nos levaria à EM Miguel Arcanjo Pereira. A estrada era boa e não tivemos nenhum problema de localização. Foi uma enorme surpresa e alegria chegar aquela escola que tinha acabado de passar por uma reforma e estava linda, limpa, organizada, crianças animadas e sorridentes e professoras comprometidas e engajadas. Uma energia vibrante que logo contaminou ao Lucio e a mim.

Todos já nos esperavam e prontamente nos ajudaram a pegar os materiais que estavam no carro e colocá-los na quadra coberta anexa à escola onde desenvolveríamos nossas atividades. Um espaço amplo, iluminado e extremamente limpo. Entre a organização do espaço e a escolha do material para as histórias que seriam contadas, as conversas aconteciam animadamente entre todos: perguntas sucessivas, repostas entrecortadas, depoimentos sobre o funcionamento da escola, empolgação das professoras por estarmos ali, ansiedade por mostrarem os trabalhos que faziam, os projetos que realizavam, os materiais que confeccionavam. A organização das salas de aulas e o cantinho da leitura eram primorosos.

A contação de histórias foi um momento iluminado: palavras, expressões, gestos, caras e bocas aconteceram de forma extremamente espontânea, com uma leveza incrível. Não se contentaram em ficar sentados, naturalmente foram se deitando no chão e aconchegando a cabeça entre as mãos. Um ou outro começou timidamente e logo a maioria deles já estava deitada: atentos, respeitosos, admirados com o desfecho de cada história. Uma belezura!Entre uma história e outra, o assunto suscitado pelo texto era prolongado por conversas que extrapolavam para opiniões, comentários e expressões de espanto pelo que tinham acabado de ouvir e de participar. Em outros momentos, o silêncio reinava como se não compreendessem que a história havia acabado ou como quem tinha se introjetado de tal forma na história que simplesmente não queria sair dela. Um bom exemplo disso foi quando terminei de contar a história “A colcha de retalhos”, de Nye Ribeiro e Conceil Correa da Silva, que termina com um diálogo emocionante entre Felipe e sua avó:

“- Vovó, vem aqui pertinho. Agora, me dá um abraço bem gostoso!
– Aconteceu alguma coisa, Felipe?
– Sabe, vovó… – cochichou Felipe, bem baixinho, no seu ouvido… – preciso te contar um segredo: eu acho que já entendi… agora eu já sei o que é saudade!”

O silêncio continuou por poucos segundo que pareceram horas. Algo mágico hávia acontecido ali, até eu mesma, olhando para aqueles rostos quietos e seus olhos mirando o nada, demorei um pouco para fazer a pergunta que os trazia de volta aquele espaço em que, na maioria do tempo, ecoava as falas de todos:

– E vocês, já sentiram saudades?

Como que saindo de um mergulho, eles foram falando de suas saudades e de suas vontades. Pessoas, coisas e lugares foram lembrados. Desejos de reencontros com familiares e amigos distantes foram colocados.

Quando propus que algum aluno ou aluna contasse uma história, não houve timidez nem empurra-empurra. Duas alunas se dispuseram a participar. Uma delas leu a história: “O coelhinho que não queria ser de páscoa”, de Ruth Rocha. Outra aluna contou a história de “Chapeuzinho Vermelho” e aproveitou para usar uma máscara da personagem que estava disponível entre os materiais que eu levara. Leitura fluente, desenvoltura no contar, tranquilidade para se apresentarem diante dos colegas e olhos atentos e marejados da professora que via sua aluna desenvolta e leitora, apesar de ser trabalhada em uma sala multisseriada. Uma vitória!

A professora Valdenira deu um importante depoimento sobre seu nascimento e crescimento na mesma comunidade onde vive até hoje, sua luta pela educação, especialmente pela escola rural e seus desafios em trabalhar com turmas multisseriadas. Quando ela começou a trabalhar no município havia 28 escolas rurais, hoje funcionam apenas duas. Para conseguir manter a escola no Sítio Brabo foi preciso muita luta. “Foi uma luta muito grande manter essa escola aberta, porque a tendência é fechar as escolas rurais, só que aqui a gente fez uma política junto com os pais e toda a comunidade, inclusive as comunidades vizinhas, e concentramos aqui os alunos dessa região. Hoje temos mais de trinta alunos matriculados em nossa escola.” Esses trinta alunos estão divididos em duas salas multisseriadas.

Não foi emocionante apenas ouvir sua história de vida, foi bonito ver como, após vinte e oito anos de trabalho, ela ainda continua esperançosa e disposta, acreditando em sua luta e em seu trabalho. Não menos curiosa e animada estava a professora Alexsandra, orgulhosa dos seus alunos, empolgada com as atividades que faziam e com a organização do espaço da sala de aula onde trabalhava.

Terminar de contar as histórias não foi o fim das conversas e brincadeiras. Continuamos conversando e brincando com os brinquedos disponíveis e com a confecção de um pião a partir de uma página de revista, um palito e cola. Foi um momento de muita expectativa, pois não falei o que faríamos com aquele material. Ao perceberem que era um pião, o desejo de todos era de que cada um deles tivessem a oportunidade de fazê-lo girar. Cada giro conseguido era motivo de vibração, alegria e altas gargalhadas que chamavam a atenção de quem ainda não estava ao nosso redor. Confeccionar um pião com materiais tão simples motivou alunos e alunas a falarem que também confeccionavam brinquedos com materiais que tinham em seu entorno. Um exemplo foi a confecção também de um pião com o fruto da favela (árvore que cresce na região). Esse foi um bom motivo para saírem da escola e irem procurar a tal árvore para me mostrarem como fazem o brinquedo. Saíram eufóricos, queriam mostrar o que faziam, o que sabiam, como brincavam, porém não conseguiram encontrar a árvore próximo à escola. Alguns sabiam onde tinha, mas para chegar até ela, era preciso entrar um pouco mais na mata e achamos melhor parar a busca por ali. Liberdade foi o nome que dei aquele momento. A escola não se limitava às salas de aula ou aos muros que a cercavam, extrapolava tudo isso e se expandia pro terreiro da escola que se avizinhava ao terreiro das casas dos alunos e alunas, às árvores que as rodeavam, ao passo firme que os impulsionavam a caminharem, aos pássaros que eram reconhecidos por seus nomes e seus cantos. Não encontraram a “favela” para me ensinarem a fazer o pião, entretanto, me ensinaram e me mostraram a beleza de uma escola viva, inteira, multidisciplinar, respeitosa com o lugar onde está inserida, com as pessoas que a frequentam, com o desejo de que a aprendizagem se dê da forma mais intensa a partir do que tem e do uso que fazem disso. A alegria da convivência e de receber as “visitas” como se fossem velhos conhecidos, ficando tão à vontade diante deles que se permitem se esparramar no chão para ouvir as histórias e tirar seus chinelos para correr em busca do valioso fruto que lhes permitirá ensinar algo, com o único objetivo de valorizar as trocas de experiências e aprendizagens.

O mais emocionante foi, depois de alguns dias, receber da professora Valdirene, um vídeo com as crianças brincando animadamente com piões que eu havia lhes ensinado a fazer e agora haviam confeccionado com a ajuda de uma colega. Junto ao vídeo, a legenda: “Os peões confeccionados por Angélica. Angélica ama tudo. É a nossa aluna mais carente financeiramente, mas é também a mais feliz, gosta muito de ajudar a todos.” O vídeo tem a duração de apenas 26 segundos. O tempo suficiente para observar que em cada tentativa de fazer o pião dar a volta em torno de si mesmo, as crianças falavam animadas sobre qual rodava melhor, qual o que ainda não conseguia. O tempo suficiente para sentir e me reconhecer nas imagens, pois de forma implícita elas me mostravam que eu estava presente ali. Que a finitude de cada volta representava o desejo de infinitude de um momento tão prazeroso de descobertas e demonstração de carinho por si mesma e pelos outros.

Vibrei ao observar crianças que havia conhecido e com quem tinha vivido momentos tão especiais brincando com o pião que eu havia lhes ensinado a fazer e que agora eles próprios construíam. A sensação que tive era de que eles haviam ficado com um pedacinho de mim e gostavam disso, enquanto eu me sentia impregnada deles e estava adorando revê-los.

Socorro Lacerda de Lacerda

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