À sombra de uma figueira centenária

 

A EMEIF Bairro Nhunguara está localizada bem próximo a uma estreita estrada de terra. É uma escola pequena, rodeada por uma vegetação que mistura resquícios de mata atlântica e plantações de banana de muitas variedades. Entre o portãozinho de ferro retorcido e o pequeno pátio coberto, que antecede o refeitório e as salas de aulas, passamos por um amplo gramado, ainda úmido pela chuva que caiu na noite anterior.

Foi no pequeno pátio que colocamos nossos materiais para fazermos a contação de histórias. Enquanto íamos preparando nosso material, a professora, com a ajuda dos estudantes, colocava tatames coloridos para que as crianças se sentassem. Eram poucas e tímidas as crianças que foram chegando devagarzinho e perguntando sobre um ou outro objeto que viam. Apesar da timidez inicial dos estudantes, o encontro foi muito agradável, divertido e não demorou muito para que todos e todas interagissem e até contassem suas histórias.

No final das apresentações propomos fazer uma foto junto aos estudantes e educadoras. Lucio sugeriu que fossemos na parte de trás da escola, pois lá ele tinha visto algo, tinha certeza de que eu ia ficar encantada e seria o local perfeito para uma fotografia memorável. As crianças correram na frente, demonstrando que já sabiam do que se tratava. Ao chegar ao lugar apontado pelo Lucio me deparei com uma figueira centenária bem ali na minha frente. Sem nenhum exagero, emudeci de emoção e admiração, só alguns segundos depois me recompus e atendi ao chamado das crianças para ir até sua sombra. Lucio sabia realmente o que era capaz de me encantar e acertou em cheio.

Fizemos várias fotos com poses diversas, com as pessoas em disposições muito variadas, mais próximas umas das outras, sentadas ou em pé nas raízes aéreas daquela árvore tão majestosa, abraçadas umas às outras ou tentando abraçar seu tronco, de mãos dadas, de perto, de mais distante. Enfim, fazendo daquele cenário um lugar mágico e encantador capaz de nos prender até o último momento do tempo que nos restava naquele lugar.

Quando finalizamos a sessão de fotos e as crianças seguiram para o almoço, fiquei sozinha embaixo daquela figueira que tanto me encantara. Tirei os sapatos para experimentar a sensação de andar descalça, pisando no tapete de folhas que forrava o chão. Senti o estalar das folhas mais secas e a umidade de alguns trechos que o sol que despontara mais tarde do que de costume ainda não conseguira secar. Respirei fundo e comecei a olhar minunciosamente para cada parte daquela figueira e todo o espaço que ela ocupava. Sua copa exuberante, ampla, com galhos irregulares avançando em várias direções e ignorando os limites do terreno da escola me encantou. Seu tronco esplêndido e imponente não se deixava abraçar por apenas uma pessoa, até que tentei, mas era preciso muito mais braços para esse abraço, mais gente para sua companhia, mais mãos enlaçadas ao seu redor. E suas raízes aéreas ocupando grande parte daquele terreno, daquele lugar onde se deixara ficar por séculos? Que espetáculo!

Enquanto passeava, silenciosa, pela sua sombra, ia descobrindo nuances de tons de verdes em suas folhas, as várias espessuras e direções dos galhos, a textura do seu tronco, caminhos traçados pelas raízes que despontavam naquele terreno irregular. Os ninhos nos galhos mais altos, a cantoria de pássaros que passavam ou pousavam entre sua folhagem. Meu olhar vagava entre todas aquelas informações, numa indecisão inusitada entre a ansiedade de olhar para todos os lados e o medo de não conseguir enxergar tudo que precisava ou o que desejava.  Estava cada vez mais admirada com as descobertas que ia fazendo, as fantasias que ia imaginando e as possibilidades de utilização daquela árvore ao longo dos muitos anos em que estava ali, resistindo ao tempo e suas intempéries.

Inevitavelmente lembrei de Paulo Freire quando falou do quanto descansou, brincou, estudou e aprendeu a ler o mundo e as palavras à sombra de uma mangueira e de tantas outras árvores no quintal de sua casa no bairro de Casa Amarela, em Recife. Impossível não fazer uma analogia entre a mangueira “freireana”, a figueira centenária e a liberdade. A liberdade que Freire ansiava quando se encontrava no exílio em plena ditadura civil-militar no Brasil e a liberdade que os ancestrais daquelas crianças, para quem contei histórias a alguns minutos, sempre ansiou no decorrer de sua vida escravizada e miserável.

A sombra daquela figueira, assim como a sombra daquela mangueira, foi para mim, naquele momento, o lugar simbólico do encontro, da troca de energias e planos, da construção de sonhos possíveis, da boniteza e do desejo de ser gente que pensa, que crê, que deseja ser livre e luta infinitamente para isso. Piso onde muitos já pisaram, no chão que já segurou tantos corpos guerreiros e sonhadores, vejo o robusto tronco como homens fortes, sempre alertas, capazes de seguir lutando por dias melhores. O tronco resiste como homens e mulheres continuam resistindo ao longo dos séculos: firmes, resilientes, sem desistir, sem desanimar, esperançando que aquela terra lhes pertença definitivamente. A sombra que agora me acolhe, certamente já sombreou e acolheu o corpo e os sonhos de quem por ali se sentou e sonhou com dias melhores, liberdade, alegria, possibilidades de viver da forma que escolheriam e não que escolhiam por eles. Referência de lugar que testemunhou fazeres e quereres de gente tolhida no direito de serem apenas eles mesmos.

Pensei que, não por acaso, aquela figueira resistiu justamente ali, no quintal de uma escola, onde crianças buscam saberes que lhes ajudarão a ler o mundo e a palavra. Assim como sempre acreditou Freire, para conhecer e compreender a história de luta e resistência de seus ancestrais e a importância e necessidade de serem livres para serem autores de suas próprias histórias de vida, deixando para sua descendência o exemplo de que na dialeticidade da história da humanidade a luta precisa sempre continuar, muitas vezes para novas e necessárias conquistas, outras para garantir a permanência dos direitos adquiridos. Afinal como diz Sérgio Vaz, “briga tem hora para acabar e luta é para uma vida inteira”.

 

Socorro Lacerda de Lacerda

3 comentários em “À sombra de uma figueira centenária

  1. Minha querida , você fala com maestria de sua experiência maravilhosa com as crianças e educadores e com essa linda figueira, parabéns!!!

  2. Minha querida , você fala com maestria de sua experiência maravilhosa com as crianças e educadores e com essa linda figueira, parabéns!!! Seu projeto encanta e educa!!!!!

  3. Coquita ler seus textos das contações é como se estivéssemos lá, vivenciando cada momento, um filme vai passando em nossa cabeça. Obrigada pela partilha . Te amo minha amiga !

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