Após uma contação de história e outra costumamos sair para conhecer os arredores da escola onde estamos, conversar com as pessoas, observar as crianças, fotografar a rotina do lugar etc. Muitas vezes nos deparamos com situações belíssimas e raras para nós que vivemos em uma cidade grande como São Paulo. Por exemplo, já nos deparamos com canários vindo comer xerém jogado por um morador e agradecendo com seu belo e inconfundível canto, um homem no terreiro de sua casa debulhando espigas de milho seco para jogar para as galinhas, ou ainda, pararmos no canto da cerca para deixarmos a boiada passar.
Na cidade de Palmópolis o que nos chamou a atenção não foi algo que visualizamos, diferente das outras vezes em que o olhar “chegava” primeiro e nos chamava para uma aproximação, lá foi o som que nos fez parar por um instante para tentar localizar de onde vinha aquela música.
A curiosidade tomara conta de nós e foi impossível não querer saber de onde vinha aquele som que mesmo de longe começou a nos contagiar. Perguntamos para duas jovens que estavam por perto, uma delas extremamente solícita respondeu que vinha da casa da Maguidá. Perguntei também sobre o que se tratava e ela falou:
– Ela deve tá ensaiando a ciranda, ela faz um monte de coisa!
Depois disso, apontou para onde ficava a casa da Maguidá e fomos até lá.
Ainda vestida com a roupa que uso para as contações de histórias, um vestido bordado por mim com flores muito coloridas e chamativas, descemos parte de uma das muitas ladeiras da cidade até chegarmos, segundo a informação que tivemos, a casa da Maguidá. Ao chegarmos presenciamos uma roda formada por senhoras e jovens cantando, dançando de forma circular e levando até o centro da roda alguém que entoava uma resposta para a música que estava sendo cantada pelas pessoas que formavam a grande roda.
Cheguei silenciosamente tentando não atrapalhar aquela cena tão bela. Foi inútil. Nossa chegada provocou olhares admirados e a paralisação da cantiga e dos tambores, talvez por causa do vestido tão diferente e colorido, ou por nunca terem nos visto na cidade. Uma jovem senhora, que falou seu nome pausadamente, se antecipou para perguntar quem éramos. Nos apresentamos e lhe contei rapidamente o que estávamos fazendo ali, depois perguntei-lhe se podíamos ficar assistindo aquela dança. A resposta veio acompanhada de um largo sorriso, da apresentação do grupo e de um convite:
– Sou Maguidá e esse é o grupo Cirandeiras Canta Pra Mim, faço parte de uma cooperativa que acolhe artistas da terra e tenta não deixar a cultura popular morrer. Mas entre na roda, não fique só olhando!
Não titubeei, entrei na roda, dancei, tentei aprender rapidamente os passos, as músicas e suas letras simples ditas cadenciadamente e acompanhada por tambores. Com rodeios diante de si mesma e paradas à frente de alguém que estava na roda para lhes substituir no círculo maior, as pessoas se animavam para fazer o melhor que podiam numa simpática demonstração do que eram capazes de fazer, numa forma quase inconsciente de me ensinar a dançar como elas já faziam.
Maguidá era exigente, a qualquer descompasso ela mandava parar os tambores e, tomando o lugar de quem estava dançando, mostrava como deveria ser feito determinado passo ou como era fundamental a dança rodada e o sorriso aberto.
Me causou uma grande alegria ver que, apesar da maioria das participantes serem idosas, a roda também era composta por jovens, desmistificando atividades que colocam os idosos como grupo de “terceira idade”. Aqueles jovens são a garantia ou a tentativa de garantir que a cultura tradicional popular não morra junto com aquelas pessoas que a receberam dos seus pais e avós e, por isso, é tão valiosa. Como dar continuidade às tradições de um povo se só os que já a conhecem participam das encenações ou dos grupos que as produzem? Sem crianças e jovens participando de algo junto aos idosos, será que não há um esvaziamento de atividades que poderiam ser oportunidades de trocas ricas e de aprendizagem mútua? Por isso, particularmente, sou contra essa denominação “terceira idade”, por tentar fazer da idade algo que distancia umas pessoas das outras, como se os idosos precisassem participar de grupos específicos para serem valorizados ou atendidos em suas necessidades, principalmente em relação ao ócio. É justamente a troca de saberes entre as pessoas de todas as idades que faz a riqueza e a beleza de encontros, seja para ensinar ou despertar habilidades, seja, simplesmente, para festejar a vida e o que ela oferece de oportunidades nos próprios encontros, organizados ou não.
Isso Maguidá sabe fazer. A roda das cirandas é composta por jovens e idosas que dançam o mesmo passo e rodopiam, em volta de si mesmo, mostrando toda graça e leveza que só a dança é capaz de proporcionar. A Associação Dos Artesãos De Palmópolis – Aapa – MG, que ela preside, é composta por pessoas da zona rural ou urbana, homens ou mulheres, independentemente da idade. A associação promove o encontro e a organização dos artesãos para a concentração de seus trabalhos em um espaço, na cidade de Palmópolis, onde são expostos e ficam à venda, possibilitando que artesãos anônimos reconheçam e valorizem a arte de cada um, além de viabilizar a chegada desses produtos e manifestações artísticas a diferentes lugares. Um belo trabalho! Sem essa oportunidade, certamente, esses artistas estariam estagnados no seu próprio saber e nos locais onde moram, isolando-se e vendo o que fazem como se o produto do trabalho de cada um fosse apenas algo diferente, sem ser lhe dado o devido valor.
Não pensem que é fácil levar adiante projetos como esses. A cultura, de um modo geral, vem cada vez mais sendo desvalorizada por aqueles que poderiam incentivar e patrocinar, reduzindo a arte a algo desnecessário na vida das pessoas. Com aquelas pessoas que teimosamente seguem lutando, nesse caso, a cultura popular sobrevive de forma digna como entretenimento e como valorização de um produto material e imaterial que precisa ser valorizado mais que nunca.
Maguidá é guerreira, não desiste fácil, não se abate. É teimosa e enfrenta as dificuldades de levar trabalho tão importante aos mais diversos lugares, buscando patrocínios e recebendo “nãos” ou “sins” como parte de um processo criativo e necessário para a continuidade de sua luta. Além de abraçar essa luta cotidiana, ainda tem tempo de levar os artesãos para feiras, convenções e apresentações em todos os lugares para os quais são convidados ou que ela se faz convidar, e de bordar poemas em seus vestidos como forma de tornar visual aquilo que poderia ser apenas um devaneio.
Para aquele grupo, dançar não é apenas bailar e mostrar suas roupas, muitas vezes confeccionadas pelas próprias mulheres, não é a garantia de dar continuidade a uma expressão artística nem o ajuntamento de mulheres que não tem o que fazer. É tudo isso e mais a delicadeza do encontro, a generosidade de quem o promove, a gratidão pelo recebimento dos saberes de seus antepassados, a experiência sendo compartilhada, a provocação de sorrisos expressivos que certamente apenas a luta cotidiana não provocaria, o som dos tambores e das canções invadindo e contagiando a cidade como um chamado para quem ainda não sabe o que está acontecendo, o arrebatamento de quem se depara e se surpreende com tanta energia e vivacidade, o convite para quem vai chegando entrar na roda, a própria roda que gira sonhos, desejos, alegrias, esperanças, entusiasmo, contentamento, prazer, regozijo, jovialidade e os mais diversos sentimentos que compõem o ser e querer ser de pessoas que sabem o que fazem e não guardam apenas para si mesma.
O tempo não foi generoso e em uma hora que pareceu um piscar de olhos, chegou o tempo de ir embora contar nossas histórias para crianças que nos esperavam. Entretanto, Maguidá quer um registro de tudo o que vivemos naquele encontro, propõe uma fotografia e destaca meu vestido como parte do cenário onde as saias e os instrumentos musicais apresentados orgulhosamente emolduram um quadro que tinha começado a se compor quando entramos naquela roda e dançamos como se já nos conhecêssemos.
Imaginei que aquela cena e todos os seus elementos fosse o registro da finalização do encontro, não fosse uma voz alegre falando enquanto se posicionava também para a foto:
– Peguem o estandarte para que ele também apareça.
Ao observar a foto me perguntei: seria o estandarte que precisava aparecer na foto, um elemento simbólico de tudo o que havia acontecido naquela tarde? Com estandarte ou não, fotografia ou não, o que ficou mesmo em minha memória, e vou guardar com extrema alegria, é o som dos tambores, o girar daquela roda e os abraços que foram se entrelaçando no meu corpo e na minha alma.
Obrigada à Maguidá e ao grupo Cirandeiras Canta Pra Mim por nos proporcionar encontro tão rico e tão desejoso de novos encontros.
Socorro Lacerda (Coquita) e Lucio Lacerda