Comunidade de Currais Novos – Jardim do seridó-RN

Quando o carro estacionou em frente à escola, o cheiro de comida bem temperada impregnou nosso olfato. Logo saberíamos que aquele perfume vinha da cozinha da escola onde estava sendo preparado o almoço para as crianças. E crianças não faltaram.
Com a nossa chegada tentaram ficar dentro da sala, em seus lugares, porém a curiosidade em saber quem éramos e o que trazíamos os fez virem ao nosso encontro e nos receber com bastante entusiasmo. Foi uma boa recepção. Me juntei a eles e amigavelmente fomos conversando e brincando até combinarmos que eu contaria as histórias após o lanche. Essa foi uma acertada decisão. O cheiro da comida continuava mais forte e agora já queriam saber se eu comeria junto a eles, pois o almoço de hoje era sopa de costela de boi feita pela melhor cozinheira da comunidade. Segundo eles, uma delícia!
Enquanto comiam, Lucio e eu preparamos o espaço para nossa atividade. Organizamos um cantinho no pátio, que apesar do vento, era claro e amplo. Como sempre acontecia nas escolas por onde andávamos, cada objeto que tirávamos das nossas malas era motivo de alegria, curiosidade, desejo de manusear, observar cuidadosamente, mostrar aos colegas, compartilhar suas descobertas em relação aos objetos que já nos pareciam tão familiares e para eles eram verdadeiras descobertas.
Para começarmos a contar as histórias foi necessário delimitarmos um espaço para que as crianças não avançassem até o tapete onde eu sentaria. Estavam realmente muito eufóricos. Eram 38 alunos entre quatro e doze anos, que compunham duas salas de aulas: uma multisseriada (1º ao 4º ano) e a outra, um Núcleo de Educação Infantil.
Alunos eufóricos, professoras dispostas, comida saborosa, cenário colorido e eu animada por estar ali. Foi assim que começamos a contação de histórias.
Entre as histórias que eu havia selecionado estava Bruxa, Bruxa, venha à minha festa, de Arden Druce. Cada vez que conto essa história me surpreendo com a reação das crianças, tanto em relação à mudança do tom de voz, que faço de acordo com a resposta do convidado, como condição para aceitar o convite, quanto com as imagens que mostro ao falar de cada um dos convidados. Imagens grandes, coloridas, bem cuidadas. Na medida em que a história vai sendo contada, as crianças vão se apropriando das falas e ajudando a fazer o convite:
– Gato, gato, por favor, venha à minha festa!
– Obrigada pelo convite, vou sim, mas só vou se você convidar o espantalho!
– Espantalho, espantalho, por favor, venha à minha festa!
– Vou, sim! Obrigada pelo convite, mas só vou se você convidar a coruja!

Foi ao mostrar a imagem da coruja que, ao invés das crianças se surpreenderem, fui eu quem me surpreendi imensamente, o que depois de tudo me fez refletir sobre a riqueza da variação linguística que temos nesse país imenso, rico culturalmente e de uma enorme generosidade.
Ao mostrar animadamente a bela imagem de uma coruja, uma criança bem pequena, da turma do Núcleo de Educação Infantil, levantou-se, ultrapassando tranquilamente a linha que tínhamos colocado como limite para que se movimentassem, e veio em minha direção apontado para a imagem, de forma segura e convicta:
– Isso não é uma coruja, é um caboré!
Achei fascinante aquele exemplo de variação linguística que se presentificava diante de mim e de um modo tão espontâneo e convincente. Não foi o nome que o fez reconhecer como sendo outro animal, foi a imagem! Relacionar a imagem que ele tão bem conhecia com um nome desconhecido do seu vocabulário cotidiano o incomodou de tal forma que o fez protestar para que eu também reconhecesse o “verdadeiro” nome daquela ave.
– É um caboré!
Repetiu ele enquanto muitos balançavam a cabeça concordando com o que a criança falava. Eu não podia perder aquela oportunidade de explorar tão rico momento de interação, enquanto eu ia repetindo fidedignamente o texto traduzido por Gilda de Aquino.
Acolhi a criança em meu colo e perguntei se ela já tinha visto um caboré. Ela respondeu prontamente que tinha um em sua casa. Mais convincente impossível. Ele não sabia apenas o que era um caboré, ele tinha um em sua casa. Diante disso, convidei-o a continuar a contação de histórias comigo. O que fizemos de forma muito bem humorada:
– Caboré, caboré, venha a minha festa!
A resposta dada por todos que ouviam a história foi muito mais eufórica do que as dadas anteriormente.
– Obrigada, irei sim, se você convidar a Árvore.
A partir desse ponto da história, cada imagem a ser apresentada era esperada com bastante alegria e curiosidade. Até finalmente chegar a hora do convite ser para as crianças e elas responderem, variando os convidados e se entreolhando admiradas pela variedade de pessoas e animais que estariam naquela festa:
– Crianças, crianças, por favor, venham à minha festa.
– Obrigado, iremos sim, se você convidar meu pai… minha mãe… meus primos… minha professora etc.
Perceberam a cumplicidade que a história propunha ao trazer para a mesma festa animais ou pessoas que em suas histórias ou ambientes naturais não convivem de forma pacífica. As crianças ficaram variando ou acrescentando convidados diversos por algum tempo. Não tenham dúvidas de que foi uma verdadeira festa que em pouco tempo se transformou em um ambiente agitado e barulhento com o qual tive um pouco de dificuldade para continuar introduzindo novas histórias. Perceberam que podiam ampliar o texto, elaborar novas falas para os personagens apresentados ou continuar criando outros finais para as mesmas histórias.
Contar histórias na EU Antônio Galdino de Azevedo, além de ter comido uma bem temperada e saborosa sopa de costela de boi, também ficou marcada pela bela experiência de me fazer refletir acerca da língua na qual falamos e em sua rica variação. Toda essa diversidade, muitas vezes vista de forma preconceituosa, quando vivenciada e compreendida, nos revela uma enorme riqueza cultural que sem dúvida nos permite ampliar a forma de ver e viver nesse país tão generoso. Embora tenhamos uma única língua oficial é importante reconhecermos que as línguas faladas no Brasil são incontáveis, desde a chegada dos portugueses, devido a sua disponibilidade para o acolhimento de vários povos e suas culturas, além das já existentes no território onde hoje se encontra nosso país.
Quando saí da escola ainda tive tempo de ir até a casa de uma bordadeira que de modo simpático e disponível me mostrou diversas peças bordadas cuidadosamente por ela, que ainda teve a disposição de ir à sua máquina de costura com pedal de ferro fundido e gabinete de madeira. Orgulhosamente ela bordou uma pequena peça com flores miúdas em um zigue-zague rápido e sincronizado de uma fina cambraia branca envolta por um bastidor de madeira visivelmente desgastado pelo tempo de uso.
Nessa comunidade, mais aprendi que ensinei, mais ouvi do que contei, vislumbrei imagens e paisagens que muito me fascinaram.
E assim, a viagem continuou cheia de descobertas fascinantes, histórias fantásticas, talentos descobertos e ouvidos ainda mais apurados para novas histórias e novas palavras e expressões que, embora eu já conhecesse algumas delas, quando ditas em seu contexto soam belamente como se as ouvisse pela primeira vez.
Esse Brasil é mesmo fascinante.

Socorro Lacerda

Isso não é uma coruja. É um caboré!

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