A partir desse momento, Silvana já começou a falar de forma empolgada e vibrante de como todos estavam nos esperando cheios de expectativas. Contou também do trabalho que estava fazendo em relação ao meio ambiente.
– Amanhã, quando você chegar lá, vai encontrar os estudantes em uma oficina de materiais recicláveis, essa é a semana do meio ambiente e estamos fazendo uma série de atividades interessantes. A escola é pequena, mas acontece muita coisa bacana. Se agasalha que lá é frio, fica dentro do parque da Serra do Mar. Já estou feliz em te conhecer, não costumamos receber atividades lúdicas vindas de outros lugares…
Silvana tinha muito o que contar e, eu, tinha muito o que aprender com ela e com todas aquelas pessoas que ela dizia estar nos esperando.
Com os papeis que comprei no bazar, me empolguei para fazer dobraduras de brinquedos, mais que nunca queria compartilhar com as crianças e adultos momentos de ludicidade e que a contação de histórias no Bairro Pamonã fosse um sucesso para elas e para mim.
No dia seguinte, acordamos em um dia muito frio, o xale que tem me acompanhado desta vez precisou ser maior e mais quente, mas não deixei de usar meu vestido laranja, com a barra bordada com crianças brincando. Saímos assim, coloridos, felizes e cheios de expectativas pelo que nos esperava.
Quando chegamos à escola fomos recebidos com muita alegria, havia mesas espalhadas por todo o pátio com diversos materiais recicláveis para criação e construção de brinquedos e objetos diversos a partir desses materiais. Uma festa! Nossa chegada provocou uma certa agitação entre as crianças, o desejo de mostrar o que estavam fazendo e a curiosidade de saber o que estávamos trazendo.
Depois da organização dos nossos materiais no lugar onde contaríamos as histórias, e com as crianças chegando para escolher onde se sentariam, saí movimentando um pau de chuva. O barulhinho discreto que ele fazia fez mais atento os ouvidos das crianças que se calavam espontaneamente para ouvi-lo. Em seguida, chacoalhando um objeto construído a partir de parte de um pote de amaciante de roupas e muitas tampinhas coloridas, plásticas, de garrafas diversas penduradas e intercaladas por sementes e contas penduradas por um fio de nylon, o barulho era mais intenso. Todos se voltaram imediatamente para olhar de onde vinha aquele som e o que o provocava. As crianças perceberam imediatamente a conexão entre o que estavam fazendo (construção de brinquedos com materiais recicláveis) e o brinquedo que eu manuseava.
Outras conexões foram sendo percebidas e estabelecidas, descobertas valorosas de como nosso trabalho se conecta ao chão da sala de aula, os projetos necessariamente desenvolvidos, a preocupação com uma reflexão séria sobre o meio ambiente e a necessidade urgente de protegê-lo e preservá-lo. O ápice disso tudo aconteceu quando contei a história A árvore generosa (Shel Silverstein, tradução de Fernando Sabino): a história de uma árvore e um menino que desenvolvem uma relação de amizade e amor. Em sua infância, o menino brinca com a árvore, sobe em seus galhos, come dos seus frutos e descansa à sua sombra, isso os faz felizes. À medida em que o tempo passa e o menino cresce, vai exigindo cada vez mais da árvore: quer dinheiro, casa, barco etc. A árvore, para fazer o menino feliz, da tudo o que ela possui para se constituir como árvore: seus frutos e toda a madeira dos seus galhos e tronco. A história é uma analogia entre a natureza e o homem, que a consome até exauri-la sem pensar que, sem a natureza, a vida no planeta se extinguirá.
Depois dessa história as conversas se encaminharam para a alegria de saber que o trabalho que faziam estava sendo contemplado pelas reflexões possíveis a partir do texto. Foi a vez deles mostrarem, alegre e orgulhosamente, os livros que tinham escrito sobre o meio ambiente, compostos de textos e ilustrações de autoria das próprias crianças. Um primor de trabalho que envolveu escola e famílias, em um entrelaçamento necessário para se pensar educação de forma compartilhada e responsável. A alegria das crianças em mostrar suas produções era contagiante, cada vez mais me senti envolvida com o que diziam, mostravam e me faziam experimentar, com a intensidade com que viviam e me faziam viver aquele momento e com o desejo de que ele continuasse por mais algum tempo.
A convite dos estudantes, saímos da sala de aula para um passeio pelos arredores da escola, fomos à horta que cultivam e aprendem, na prática, toda a relação do homem com a terra, com a natureza e sua forma saudável de conseguir alimento que, nesse caso, afirmo, não é só para o corpo. Viver a experiência de cultivar um alimento, cuidar e saboreá-lo é mais do que falar do alimento e dos cuidados envolvidos para sua produção, é experenciar o que alimenta nosso espírito através do que não se vê, apenas se sente ao colocar a mão na terra, sentir o cheiro da terra molhada, adubada, a textura das sementes colocadas no solo na esperança da germinação, na transformação da semente em nova planta, como belamente diz Gilberto Gil na canção Drão: “Tem que morrer pra germinar, plantar n’algum lugar, ressuscitar no chão, nossa semeadura”.
O que mais vi naquele “passeio” foi uma semeadura para além da semente da planta, vi o plantio de uma semente de esperança para o florescer de uma educação libertadora e humana, uma educação que integra o estudante a sua vida cotidiana sem dissociá-la do que seja o aprender “escolar” e o aprender para a “vida” (como pensam algumas pessoas que insistem em achar que escola/família/sociedade não precisam estar imbricadas em seus saberes e experiências). A impressão que tenho é que ali se educa para a cidadania, para a construção de um indivíduo integral que vislumbra um mundo melhor através do que é capaz de ser e fazer. Um sonho!
Seguindo nossa caminhada pela escola e seus arredores, as crianças não se cansavam de mostrar orgulhosas os seus feitos e de serem gentis. Em todo o trajeto fui ganhando coisas que iam colhendo: limão, pinha e um galho de erva doce que perfumou o restante do caminho. Enquanto algumas crianças iam mais apressadas à frente para mostrar primeiro o que, para mim, seria novidade, outras se contentavam em seguir ao meu lado, no meu ritmo, admirando cada cantinho daquele lugar que me parecia cada vez mais mágico: a plantação de hortaliças, a composteira, o limoeiro salpicado de frutos maduros, o cantinho de artes, as exuberantes flores am
arelas se debruçando sobre a cerca, a gruta onde uma santa admirava e abençoava tudo majestosamente. O amor se presentificando em cada canto, de várias formas, em suas diversas nuances. Lembrei-me de Bell Hooks, “Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos aprender a estendê-las a nós mesmos”. O amor-próprio, a autoestima, a felicidade de se fazer o que se gosta e ter apoio para isso, crescer com e para os outros, existir como essência da vida que brota poeticamente nos emocionando e nos fazendo emocionar.
De volta ao pátio, onde inicialmente acontecia a oficina com materiais recicláveis, a alegria era outra, o almoço estava sendo servido e o cheiro do tempero fresco invadia o espaço. Estava sendo servida uma deliciosa polenta e ninguém se fez de rogado, entramos na fila para saborearmos tão preciosa iguaria que, quentinha como estava, serviu como um aconchego naquela manhã fria.
Saímos felizes e desejosos de novos encontros. No caminho de volta, Lucio e eu falávamos euforicamente acerca do que tínhamos vivido, dos sentimentos de gratidão e alegria pelo que experenciamos, da certeza de que tínhamos recebido muito mais do que pensávamos em doar, que o trabalho que fazíamos ao levar literatura e leitura para as escolas rurais se materializava no que vivíamos e do quanto isso alimenta nossos desejos na construção de valorosas memórias que certamente seriam compartilhadas com nossos filhos e netos. Estávamos transbordando da certeza de que naquele dia Deus se presentificou naquele espaço e nos abençoou com sua luz e sua sabedoria.
Em um raro momento de silêncio no trajeto para a pousada, abri a mão e senti o perfume da erva doce que ainda segurava como se quisesse que permanecesse ali por muito tempo. Seu cheiro me transportou para os chás da minha infância, feitos pela minha mãe e, rapidamente, me trouxe de volta para as trilhas do Pamonã. O tempo já não importava, passado e presente se confundiam e me faziam sentir o mesmo prazer, a mesma alegria de acreditar que educação é vida, é sentimento verdadeiro, alegria de existir, felicidade de doar, gratidão por receber, caminhos por trilhar, emoções arrebatadoras e experiências significativas que nos farão querer replicar, reviver, ressignificar.
Que sejamos capazes de continuar nos emocionando como se fosse sempre a primeira vez, como se o Pamonã e aquelas crianças nos acompanhassem nos momentos de certezas e dúvidas para jamais desistirmos de acreditar que trabalhar e sonhar é possível e urgente.
Socorro Lacerda de Lacerda